2020, um balanço: uma nova maneira de gostar

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Perinha, o gato

Disse-o antes mas repito só para enquadrar o resto: não sou uma pessoa de animais, apesar de os respeitar e querer ver protegidos, como é seu direito. Talvez agora deva dizer que eu não era uma pessoa de animais porque sinto que isso mudou. Se tivesse de escolher uma coisa boa trazida por este ano tão nefasto, escolheria, sem piscar os olhos, o nosso Perinha.

Há um meme muito giro que eu nunca tinha compreendido. É sobre alguém que chega a casa com uma nuvem negra sobre a sua cabeça (stress, cansaço, tristeza) e assim que passa a soleira da porta há um gato que vem e dissipa essa nuvem negra de imediato. Agora percebo porquê!

Daqui a uns dias, o Perinha comemora quatro meses na nossa casa e amanhã celebra sete meses de vida. É um inquilino muito silencioso, que só ouvimos de manhã cedo, quando nos pede para abrir a porta da sala. Anda sempre atrás de nós pela casa mas também gosta do seu tempo sozinho, dormitando na cama da Amália.

Os miúdos brigam pela sua atenção e pela oportunidade de o terem ao colo. Todas as manhãs, depois de tomarem o pequeno-almoço e de se vestirem, o Vicente deita-o no seu colo, a Amália e o Augusto sentam-se no chão também e fazem festinhas ao gato em simultâneo. É um bocado intenso, eu sei, mas ele parece gostar porque não foge imediatamente. É um gato de casa que adora estar à janela a ver quem passa e à espera de nos ver chegar do trabalho e da escola. Segue corvos com os seus olhinhos amarelos e tenta apanhar as moscas ou abelhas que vê passar lá fora.

Já nos destruiu a árvore de Natal duas vezes, é certo mas mesmo isso não me faz zangar com ele. Só não gosto quando nos arranha com aquelas pequeninas garras afiadas mas de resto, tudo de bom. De vez em quando, olha-nos de uma maneira tão séria, parece mesmo uma pessoa a tentar fazer sentido de uma casa cheia de gritos e correrias e de risadas. Empoleira-se nos sítios mais inesperados e adora os seus brinquedos - às vezes, brinca tanto que acaba esticado no chão, quase sem fôlego.

Já tinha cuidade de outros animais de porte pequeno mas nunca de um gato. Não sentia nenhuma vontade de ter um gato, sempre me tinham parecidos demasiado independentes. E assim é este gato mas eu gosto dele mesmo por causa disso. Faz a sua vida, de vez em quando presenteia-nos com um bocadinho de colo ou festinhas nas pernas mas não se deixa prender por ninguém. 2020 foi, no geral, uma grande bosta mas cá eu arranjei mais um espacinho no meu coração para um gato chamado Perinha.

2020, um balanço: música para esquecer o mundo

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Canções para corações doridos num ano de pandemia

O meu ano cultural, chamemos-lhe assim, foi dominado por mulheres e a música não foi excepção. Dois dos meus álbuns preferidos deste ano foram escritos e cantados por duas mulheres que aparentemente têm pouco em comum mas que me fizeram cantar, sorrir e chorar.

Já gostava da Phoebe Bridgers há um bocadinho e nunca fui muito à bola com a Taylor Swift. Uma vinha daquela cena indie que vocês respeita, outra da pop mais mainstream que se faz por aí. Mas aterraram as duas na minha vida e neste ano para o qual já me faltam adjectivos.

Foram os álbuns que mais ouvi este ano e parece-me que vieram para ficar.

Ouvi muito esta música da Taylor Swift que fala sobre aquelas relações em que há uma pessoa totalmente investida na relação e há outra que vai brincado com os seus sentimentos, ao sabor das suas vontades. Aquela sensação de nos sentirmos como um velho casaco e vem a outra pessoa que nos diz que somos o seu casaco preferido, para depois nos esquecer em cima de uma cama qualquer. Não é uma metáfora muito bonita mas a maneira como a música está escrita, todas as pequenas memórias que vão ficando, que permanecem mesmo quando o fumo se dissipa, isto é universal e fala a qualquer coração, em qualquer geração.

E, do outro lado, quando, aos 03m50s, a Phoebe Bridgers canta “…the end is near…”, não consigo conter as lágrimas. Porque ou a vacina vem para nos salvar lentamente e podemos começar a sonhar com o fim deste pesadelo; ou o fim do mundo como o conhecemos está a acontecer agora, sem nos darmos conta. E tanto o alívio como o desespero estão contidos naquele coro que vem a seguir.

2020, um balanço: uma obsessão

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

As eleições americanas

Créditos: Bloomberg (vista aqui)

É um bocado estranho, eu sei, mas eu estive e ainda estou obcecada pelas eleições presidencias nos Estados Unidos. Sinto-me estranha porque obviamente não sou cidadã nem sequer residente no país mas acompanho com muito entusiasmo e fervor tudo o que se tem passado desde o início da campanha eleitoral.

O meu interesse era apenas um: presenciar o momento em que Donald Trump perdia a presidência. Não me importava muito contra quem (confesso que o meu coração de esquerda torcia pelo Bernie Sanders, ao mesmo tempo que compreendia que ele é demasiado radical para ter qualquer hipótese nos Estados Unidos) mas hoje, mais de um mês depois do dia das eleições, estou até contente que tenha sido Joe Biden a ganhar.

Estas eleições presidenciais eram apenas sobre uma coisa: decência. Para mim, não estava em causa um programa partidário, a competência dos candidatos mas única e exclusivamente a troca de um presidente amoral, corrupto e sem um pingo de humanidade por uma pessoa “normal”. Uma pessoa “normal” também tem defeitos, não é isenta de escrutínio, não vai de repente resolver os problemas raciais, sociais ou económicos de um país inteiro mas vai, pelo menos, liderar pelo exemplo em busca da melhoria das condições de vida de todos os cidadãos.

Essa pessoa “normal” não vai demonizar imigrantes nem nacionalidades inteiras, não vai incitar ao ódio racial, não vai promover linchamentos nem actos de terrorismo. Uma pessoa “normal” rodeia-se de especialistas nas mais diferentes matérias, com provas dadas e tenta governar o melhor que sabe e que o conhecimento de um gabinete permite. Uma pessoa “normal” compromete-se a ajudar as empresas que tanto têm sofrido durante este mas também com os seus cidadãos (queiram term votado nessa pessoa ou não) que estão a sofrer em massa com o desemprego, a fome a a falta de acesso a cuidados médicos generalizados. Uma pessoa “normal” passa o seu tempo a governar, a informar-se, a tomar decisões e não a gritar inanidades e mentiras no Twitter.

Uma pessoa “normal” não coloca a sua família em postos para os quais essa família não tem qualquer qualificação e não povoa os seus gabinetes com pessoas desqualificadas apenas porque elas lhe servirão os seu propósito final: tratar um país inteiro como uma das suas empresas e enriquecer a todo o custo. Uma pessoa “normal” compreende qual é o seu papel e defende que o governo é totalmente of the people, by the people, for the people.

No dia 3 de Novembro, ciente de que os resultados não iriam ser conhecidos ness dia (e provavelmente Trump estaria à frente, já que os votos presenciais são contados primeiro), não liguei muito ao processo eleitoral. Sabia que as contagens iam demorar, era natural se pensarmos também nas quantidades de votos enviados pelo correio antes do dia das eleições. E no dia 7 aconteceu: amigos enviaram mensagem a confirmar a vitória de Biden (ainda apenas nas projecções) e eu senti imediamente um alívio e uma grande alegria. Emocionei-me a ver as pessoas que festejavam nas ruas, comovi-me com a ideia de que a democracia tinha cumprido o seu papel e as pessoas tinham finalmente decidido eleger a pessoa “normal”. Sabia que ainda não eram os resultados finais mas estava longe de imaginar o que iria acontecer até hoje, mais de um mês depois e a escassos 3 dias do colégio de eleitores depositar finalmente os votos de cada estado.

Trump tem alimentado a ideia que o resultado destas eleições foi falsificado sem nunca apresentar nenhuma prova. A sua equipa jurídica (que já mudou várias vezes e que, numa espécie de castigo bíblico,mestá agora em grande parte infectada com COVID) já perdeu 56 processos em tribunal, todos com a mesma justificação: não existe nenhuma prova de que tenha havido fraude. Nem mesmo os juízes que Trumpo nomeou para o Supremo Tribunal aceitaram sequer ouvir um dos casos, justificando-se na mesma maneira. Naquele que muitos pensam ser a última tentiva de golpe, vários governantes de pelo menos 17 estados pediram ontem para que o Supremo Tribunal elimine ou desclassifique milhões de votos legalmente válidos e inverta o resultado das eleições. Está por ouvir a decisão do tribunal mas muitos pensam que é apenas uma tentativa de alguns governantes republicanos se mostrarem leais a Trump, que no fundo destruiu o Partido Republicano para o transformar num apenas num culto de uma personalidade vil e nojenta.

(Se chegaram até aqui, parabéns e obrigada pela paciência! Mas podem mesmo ver como isto me entusiasma.)

Eu não sou, no geral, uma pessoa de convicções inalteráveis: compreendo que as coisas podem mudar, as pessoas podem errar e corrigir a sua trajectória e não ponho a mão no fogo por ninguém. Por isso, não acho que Biden seja o salvador da pátria e que, com ele, todos os profundos e divisivos problemas dos Estados Unidos irão desaparecer. Mas o estado das coisas é tal que ele parece ser uma pessoa decente e, neste momento, decência é tudo aquilo que parecem precisar os Americanos. E nós todos, porque o que acontece lá, tem o condão de nos influenciar também. E por isso, desejo aos Americanos o mesmo que desejo para qualquer pessoa do mundo: um governo de pessoas decentes, capazes e inteligentes, que não sobrepõem os interesses económicos aos interesses dos seus cidadãos. Com defeitos, é evidente, mas com aquela capacidade de se pôr na pele dos outros. E o dia 20 de Janeiro nunca mais chega!

2020, um balanço I: um ódio de estimação

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Ódio de estimação

Esta é muito fácil e muito actual: o meu ódio de estimação este ano são os negacionistas.

Créditos: Mario Tama para Getty Images (vista aqui)

Lembro-me bem do mês de Fevereiro: havia já sinais de alarme vindos da China e já se começava a ver situações insustentáveis no Norte de Itália. Dois colegas de trabalho insistiram em ir fazer ski para uma estância que ficava onde? Em Bergamo, no Norte da Itália, um dos maiores focos de infecção da primeira vaga. A maioria das pessoas achou que era uma decisão inconsciente, uma vez que as viagens já eram desaconselhadas mas eles diziam que a situação não era grave, que era tudo um exagero e que iam tomar as precauções. Resultado: foram obrigados a fazer quarentena quando regressaram e uma semana depois começou o confinamento no Luxermburgo.

Isto aconteceu numa altura em que sabíamos muito pouco sobre a doença, apesar de já nessa altura ser claro que ela ia alastrar sem restrições. Os meus colegas não avaliaram bem a situação mas compreenderam mais tarde os riscos que tinham corrido.

Muitas pessoas parecem ainda não ter compreendido, nove meses depois, que o perigo existe e é real. Desde as pessoas que simplesmente se recusam a pactuar com as medidas de higiene mais básica e acham que usar máscara é um ataque às suas liberdades, aos grupos organizados que são pródigos em espalhar informação grosseira, falsa, fabricada, às pessoas que acham que a vacina nos vai injectar transmissores e receptores 5G para que um qualquer génio do mal nos controle. Não. Há. Pachorra.

Quero dizer, antes de mais: eu não acredito cegamente em tudo o que nos dizem. Mas ouço os factos/recomendações/medidas armada de alguma racionalidade e encaro-os como a minha (modesta, se calhar insignificante) contribuição para a manutenção dos nossos padrões de saúde pública. Eu compreendo, acima de tudo, que ninguém tem a solução milagrosa para esta pandemia: nenhum governo, nenhuma instituição mundial, nenhum indivíduo sozinho. E também compreendo que a mortalidade da doença não será mais alta do que outras doenças que já conhecíamos mas uma coisa me parece evidente: todos os esforços são também dirigidos para que os sistemas de saúde não colapsem e, consequentemente, morram ainda mais pessoas sem cuidados porque as urgências e cuidados intensivos estão a rebentar pelas costuras.

Acho que não se trata de aceitar tudo o que nos pedem sem nenhum espírito crítico mas sim de pesar, a muito custo, os prós e os contras de cada decisão que tem vindo a ser tomada. Trata-se de confiar nos nossos governantes e cientistas, sabendo obviamente que vão existir erros de julgamento e estratégias que vão falhar. E aceitar que tudo pode ter sido em vão mas isso só vamos poder ver no futuro, quando a distância for suficiente para finalmente olharmos para trás e estudarmos os efeitos dessas decisões. Até lá, estou do lado da ciência.

Há muita gente sem qualquer tipo de formação médica (e até mesmo sem qualquer tipo de formação) que diz que nunca tomará a vacina porque é impossível ter uma vacina que funcione em tão curto espaço de tempo. Mas esquecem-se que este vírus parou o mundo e alterou brutalmente a vida como a conhecíamos e por isso todos os esforços, todo o financiamento, todo o capital humano foram canalizados para encontrar uma solução assim que possível. E há ainda pessoas que acham que a vacina servirá para servir uma conspiração mundial (aliás, inter-planetária se acreditarmos nas teorias do Comando Intergaláctico - digam isto sem se rirem, se forem capazes!) que nos controlará a todos. Deve ser muito cansativo viver assim, é só o que me ocorre dizer.

É normal termos medo. É normal sentirmo-nos perdidos e não sabermos em quem confiar, afinal nenhum de nós viveu uma situação assim. É completamente legítimo o receio de uma vacina acabada de criar e da qual se conhece ainda muito pouco. É normal discordar de algumas medidas tomadas até agora, especialmente quando os factos demonstram que foram ineficazes. O que não é normal é viver a sonhar com uma conspiração que se esconde em todo o lado e cujo os objectivos são apenas diminuir e controlar a população da Terra. Negacionistas, este ano foi realmente vosso mas caramba, vocês cansam-me que sa farta.


41

Fiz quarenta e um anos. Doeu menos que no ano passado, atravessar esta barreira que aos vinte parece longínqua mas, vai-se a ver, e aqui estou eu, quarentona. Queria escrever um ensaio profundo e bonito sobre este tempo mas faltam-me as palavras, a inspiração, o tempo e por isso deixo só notas soltas sobre os últimos tempos e já com quarenta e um anos.

Há duas semanas, tive um acidente de carro. Estava a regressar a casa e um senhor ignorou um sinal de cedência de passagem e enfiou-se directamente na minha porta. Devia circular a 30km por hora mas, como circulava muito acima disso, o meu carro ficou atravessado na estrada, porta completamente escangalhada, vidros e espelhos partidos. Consegui perceber segundos antes que ia ter um acidente e ainda tentei desviar-me mas não fui a tempo. A minha primeira reacção foi de raiva: primeiro, ainda dentro do carro e depois fora do carro, a tentar processar o que tinha acabado de acontecer, Raiva porque não ia poder apanhar os miúdos nos tempos livres (e o Mário estava longe), raiva porque era o carro de serviço e eu não sabia o que fazer, raiva porque ele simplesmente estava distraído a uma velocidade muito acima da permitida. Tive de esperar mais de duas horas para que tudo se resolvesse (a polícia a ajudar-me, uma amiga que ficou com os miúdos, o Mário entretanto a chegar, declaração preenchida, a limpeza da estrada sem demoras, o reboque que nunca mais chegava). No final, depois de tudo resolvido, voltei para casa a pé com todos os meus pertences, mergulhada numa tristeza que não sabia explicar e num desejo agoniante que o dia acabasse finalmente. Não fiquei ferida com gravidade mas preciso de fisioterapia para que os músculos das costas recuperem do choque. Fiquei com um bocadinho de medo de cruzamentos em que tenho a prioridade mas não deixei nunca de conduzir.

No Sábado, chorei com o resultado das eleições norte americanas. Eu sei que muita gente acha que é absurdo acompanhar e mesmo sofrer com eleições que nem sequer são no nosso país mas senti desde 2016 que o que está em jogo é a decência, a luta por uma sociedade mais justa, o mal no seu estado mais puro e disseminado. Ter como presidente um homem que se comporta como uma criança de três anos, sem qualquer experiência ou aptidão política, rodeado de pessoas igualmente inaptas e com planos que em pouco beneficiavam o cidadão comum, que demonstrou desde o primeiro dia que ia fazer implodir as instituições estatais através do seu nepotismo, racismo e negócios em proveito próprio - era tudo mau demais para ser verdade. Não sou cidadã norte-americana mas não posso evitar pensar que ali está um exemplo, uma legitimização de tudo o quanto está mal neste mundo e era vital derrotá-lo inequivocamente. Caíram-me lágrimas de alívio e de alegria, mesmo sabendo que Biden não é um santo e nem sequer vai ser a salvação de um país profundamente dividido nas suas convicções. Mas o primeiro passo era restaurar a presidência com um homem digno, calmo, confiante, conhecedor dos corredores da política, isento tanto quanto possível, sensível às questões sociais, raciais e identitárias, defensor da ciência - o alívio foi, pois, gigante. Mas tudo está longe de estar resolvido e a minha ansiedade voltou assim que percebi que há quem defenda o indefensável e se recuse a aceitar a realidade. Veremos qual vai ser o rasto de destruição que vai deixar.

Percebi há pouco tempo que me tinha enganado com algumas pessoas. Quer dizer, eu sabia que elas eram muito diferentes de mim mas acho que quis sempre ver as partes boas e esquecer as partes más. Chegou o momento de cortar esse mal pela raíz e não admitir toxicidade perto de mim e das pessoas de quem gosto.

O tempo está escuro e chuvoso e há dois dias que o nevoeiro não levanta. É nestes momentos que remexo na minha memória à procura dos dias de Verão e que faço a contagem para o dia mais curto do ano. Aproximamo-nos a passos largos e depois é sempre a somar minutos de luz até ao Verão.

Ultimamente, o mundo tem sido um pouco demais para mim. É como se de repente houvesse tanto mal, tanta miséria e sofrimento, tanta catástrofe e tanto desastre natural que não consigo aguentar. Sinto que o mundo está numa bifurcação entre voltar a um passado de repressão, ausência de liberdade e de direitos e um mundo que tem tudo para ser melhor e mais justo para todos, caso os nossos líderes nos conduzam nesse mesmo sentido e todos nós façamos a nossa parte. Perdoem-me a construção simplista mas sinto que os bons estão a perder terreno e que os maus estão já ali na esquina, à espera do momento certo para tomar conta de tudo. Não está fácil para pessoas como eu, que choram por tudo e por nada.

E o Natal está quase aí e começa a ser cada vez mais evidente que não vamos passá-lo com a nossa família. No estado em que estão as coisas, não vamos a lado nenhum mas não consigo evitar sentir uma pontinha de esperança de que tudo vá melhorar e que esta segunda vaga comece a ficar finalmente sob controlo. Até lá, acho que vou começar a procurar o bacalhau e esperar conseguir couves para a ceia. Valham-nos as novas tecnologias que nos deixam estar com os nossos, mesmo que não lhes possamos tocar ou pedir colo.

Estou farta de pessoas, especialmente em caixas de comentários. Estou farta de negacionistas, que acham que tudo isto não passa de um complot mundial para alguém dominar o mundo e que esse domínio vai chegar através de um chip contido numa vacina. Estou cansada das pessoas que criticam tudo o que o governo decide, como se algum governo tivesse um plano para lidar com uma situação deste género e não estivesse a navegar à vista. Estou cansada dos que querem confinamentos e dos que defendem a Suécia e dos que têm opiniões sobre o uso da máscara. Sinto uma terrível falta de moderação, de racionalidade, de calma e de respeito pelas autoridades, mesmo que elas se contradigam e que cometam erros. Não existia nenhum manual para lidar com pandemias e talvez nunca vá haver um. Mas a única coisa que eu posso fazer é confiar na ciência e na responsabilidade dos outros, ao mesmo tempo que faço a minha parte para não piorar as coisas. Sem gritar, sem espalhar mentiras e teorias da conspiração e entendendo que ainda teremos muitos erros pela frente. Agora, mais pessoas é que não.

E pronto, aos quarenta e um anos tenho a cabeça a ferver. Sempre pendurada por um fio, tentando moderar o consumo de notícias e ignorar a loucura que vai contaminando tudo, concentrado-me no nosso pequeno círculo familiar e nas coisas que me fazem sentir bem. Afinal, como sempre, são eles que importam.

Vicente, uma década de vida

Há dez anos, exactamente na hora a que este post é publicado, nasceu Vicente Mauricio Tavares, antes conhecido como feijãozinho ou o cavalinho cujo coração cavalgava junto do meu. Quanta alegria (e desorientação…) naquele sala de partos na freguesia de Santa Maria dos Olivais, onde nascia o alfacinha que tinha desejado alentejano!

É dificil falar sobre o que é ser mãe há dez anos e, se por um lado tudo parece ter levado uma eternidade a acontecer, por outro parece-me que num piscar de olhos passámos de uma família de três para uma família de seis (sim, porque o Perinha também conta!). Eu tornei-me noutra pessoa, parece-me inevitável que isso aconteça quando chega um filho ao mundo. E digo que me tornei numa outra pessoa para o que isso tem de bem e o que isso tem de mal porque se há coisas que a maternidade me trouxe foi uma visão bem clara (e às vezes assustadora) das minhas fraquezas.

Vicente. Um nome de fadista, um nome da moda no ano em que ele nasceu, um nome que nos levou um tempo a decidir, entre listas descarregadas dos registos notariais para tirar ideias e para conseguirmos chegar a um acordo. O Vicente é o que vai à frente, é o que sofre para os mais pequenos terem tudo fácil, é o desbravador. Sempre cheio de curiosidade, incansável quando quer uma coisa, irascível quando não a consegue (tal e qual a sua mãe…). É um comunicador nato, muito elogiado por outros pais por saber manter uma conversa interessada e coerente. Sempre dissemos que quando ele começasse a falar, nunca mais se ia calar e oh, como tivemos razão!

É um menino a sério, sem que nunca tenhamos forçado esse conceito e que tenhamos de o lembrar muitas vezes que não há música para homens e mulheres (como uma vez nos disse) ou que cada um veste o que quer e usa o cabelo como quer, liberdade e tolerância são fundamentais. Sempre gostou de tractores, moto-quatro, dinossauros, futebol mas curiosamente parece manter mais amigas do que amigos. É bom aluno mas começa a dizer que não gosta da escola (na verdade, aborrece-se muitas vezes porque aprende rápido e também é muito preguiçoso, por isso esse não gostar está mal explicado). Fala quatro línguas e ainda compreende mais uma, e por isso está a caminho dum futuro plurilingue (obrigada, Luxemburgo!) que espero cheio de sucesso.

Interessa-se pelo mundo, pelas notícias e pelas descobertas, percebe-se quando tenta fazer sentido sobre as coisas que vê ou lê e a televisão é a maneira favorita de aprender. É preciso obrigá-lo a sair do sofá mas basta acenar-lhe com uma bola ou uma bicicleta e ele levanta-se sem hesitar. Já começou a ir ao parque sozinho: sem telemóvel, só com um relógio meu para saber a que horas deve voltar para casa e cumpriu em todas as vezes. Vai para a escola sozinho todas as manhãs e já começa a falar em ter as chaves de casa para o regresso também.

Adora a sua família com fervor, embora isso nem sempre se note na relação que tem com os irmãos: protege-os e brinca com eles mas a diferença de idades mete-se muitas vezes no caminho. Parte-me o coração quando diz que gostava que voltássemos a ser só nós os três porque é claro que gostaríamos de ser pais únicos para cada um deles e dar-lhes todo o nosso tempo, sem dividir atenções mas somos seis e o resto da família está longe e por isso temos de estar os seis juntos na maior parte do tempo.

Vicente que nos ensinou a ser pais, que nos tirou do sério e esticou os limites muito além do aceitável, que nos transformou o coração para sempre, que foi esperado e desejado e celebrado, que nos enche de orgulho e (às vezes) de nervos, que nos dá o prazer de o ver crescer, aprender e de crescer também com ele porque pais e filhos vão sempre assim, lado a lado.

Saudades de um Vicente bebé? Tenho muitas mas vou-me consolando com um homenzinho cuja personalidade se tem vindo a formar e transformar a olhos vistos. Quem me dera viver para sempre para estar sempre ao seu lado.

(Se não eram leitores à data, podem ler o post do anúncio da gravidez aqui ou o do nascimento aqui. No meio, a história de uma gravidez feliz.)

Palavra da semana: Absurdo

Tudo isto é um absurdo. Tudo!

Acabo de ler uma notícia sobre a possibilidade de um pastor numa zona remota da Mongólia ter contraído a peste bubónica ou, talvez se lembrem melhor, a peste negra. Eu já não sei lidar com todas as coisas que têm acontecido este ano. Quando cheguei a Dezembro passado, pensei que tínhamos tido o pior ano de sempre e estava cheia de esperança para 2020. Agora, olhar para trás é sinónimo de me rir da ingenuidade com que esperava o novo ano..

Estamos todos cansados. Estamos todos fartos de estar fechados em casa, de estarmos limitados nas nossas actividades diárias, de cumprirmos escrupulosamente as regras de higiene, de evitarmos mesmo as pessoas nos passeios, nos supermercados, nas escolas. Mas o que é frustrante é que tudo o que nós fazemos pode não ser suficiente porque dependemos sempre de um pressuposto: o de que a maioria das pessoas se comporta assim, respeitando as directivas dos nossos governos e das organizações de saúde.

É desesperante ver o que se passa no mundo. Em quase todos os países onde o desconfinamento é uma realidade, os números voltaram a crescer, com surtos localizados, é certo, mas que vão assustando aqui e ali. Depois de três meses em casa, as pessoas pareciam já ter assimilado a necessidade de mudar o seu comportamento e entendido que a vida tal como a conhecíamos não regressaria tão cedo. É claro que existem dois casos de recrudescimento destes surtos: por um lado, as festas clandestinas e a falta de cumprimento das regras de higiene em bares e restaurantes, as festas privadas reunindo mais de 50 pessoas(!) têm mostrado quão rápido as pessoas se podem esquecer de que o vírus continua aí e que isso traz consequências; por outro lado, a falta de condições nos transportes públicos e nas habitações de bairros mais degradados, as condições precárias em que vivem muitos trabalhadores também têm justificado esse aumento nos números mas sem que se possa verdadeiramente apontar o dedo às pessoas - elas são vítimas de um sistema que continua a ignorar direitos em nome do lucro e de maior produtividade.

Depois, há os líderes que simplesmente não souberam (ainda não sabem) lidar com a pandemia, especialmente aqueles que, fazendo-se testar todos os dias, sugerem que menos testes à população significariam necessariamente menos casos. Há os que não acreditam na ciência e preferem dar voz às teorias da conspiração, há os que confudem liberdade com irresponsabilidade, há os que acham que devemos sacrificar os mais frágeis em prol da economia. Há os que discordam de todas as regras e recomendações. há os que não entendem que, tal como na ciência, estas recomendações podem ser ajustadas e alteradas pelo tempo, fruto do nosso maior conhecimento e mais experiência com a doença. Há os que acham que vamos todos morrer (o que é um facto, apenas não todos agora), há os que acham que o vírus não existe e isto é tudo uma cabala de um grupo misterioso de gente que quer dominar o mundo, há os que culpam a China e os que fazem o que lhes apetece.

E depois, no meio disto tudo e como se toda esta confusão não fosse já suficiente, há os que vão aproveitando para cuspir ódio, há os que perpetuam preconceitos e estereótipos, há os que entendem que agora é o tempo de manifestarem toda a sua ignorância e mesquinhez. Fujo às caixas de comentários sempre que as vejo mais carregadas e tento ficar-me pelas fontes oficiais, das quais leio as publicações, justificações e recomendações, que tomo como as certas, consciente de que toda a gente pode mesmo assim errar.

Depois, as notícias da peste suína. Depois, as notícias sobre a peste bubónica. Depois, as guerras que se arrastam há anos e a fome que trazem consigo. Depois, os desastres naturais, sempre a multiplicarem-se. Depois o racismo, a homofobia, a transfobia, o abuso de poder, a impunidade, a extrema direita (que até há bem pouco tempo não tinha assento no parlamento português e puff!, vai-se a ver e agora já tem) a ganhar terreno, as teorias da conspiração, o tráfico de pessoas, as alterações climáticas (cada vez mais evidentes e com consequências cada vez mais trágicas), a crise financeira que já está a espreitar, a sensação de que estamos à deriva, sem qualquer esperança de podermos atracar num porto seguro.

O meu segredo para lutar contra isto tudo? Concentrar-me nos meus filhos e trabalhar para que eles possam ser uma mudança no mundo. Filtrar o que consumo, as fontes de onde consumo, deixando espaço ao contraditório e à reflexão. Tentar fazer tudo o melhor que posso. Procurar a beleza nas coisas mais triviais. Lembrar-me que vozes de burro não chegam ao céu. E secretamente esperar que todas as pessoas privilegiadas ponham a mão na consciência, abrandem o ritmo e não deitem tudo o que todos conseguimos a perder.

Quarentena, segunda semana

Não está fácil. Saí pela última vez de casa na Sexta, dia 14 de Março, há dez dias atrás. Devo corrigir: já saímos algumas vezes para o jardim para que eles (e eu) possam apanhar um pouco de Sol, ar fresco, esticar bem as pernas e gastar alguma da energia que vamos acumulando em casa. De resto, só os vi (pessoalmente) a eles e ao Mário desde esse dia.

Vi no outro dia uma fotografia de um grafitti que dizia que não devíamos romantizar a quarentena e, envergonhada, concordei com isso. Focados nos nossos agregados, nos nossos problemas de primeiro mundo, é simples esquecer que há quem não tenha já o que comer ou quem já não vá receber o próximo ordenado. Há quem esteja sozinho e vulnerável neste período, coisa que nunca tinha antes considerado antes de falar com a minha irmã, isolada sozinha há outros tantos dias ou com os meus pais e avó, agora impedidos de se verem diariamente e em grupos de risco diferentes. Há quem tenha sido abandonado em lares, há quem morra sozinho em hospitais sobrelotados, há quem se despeça dos familiares moribundos através de videochamada, há muitos que nem podem chorar devidamente os mortos.

Tenho aguentado o barco porque eles os três não podem ver-me triste a toda a hora mas às vezes as coisas são mais fortes do que eu. Há demasiada tristeza no Mundo para eu conseguir aguentar um dia sem chorar. E também há tantos gestos de bondade, de união e de salvação - são demasiadas emoções para uma pessoa como eu gerir em distanciamento social. A maioria dos meus colegas continua a trabalhar a partir de casa e ainda conseguem manter uma certa rotina mental mas eu, depois de tentar várias vezes trabalhar com eles em casa, desisti: preciso de muita concentração e não posso estar a ser interrompida pelas brigas, pelos gritos ou pelos três quando estão simplesmente aborrecidos. A minha chefe ligou-me num dia para sabe como iam as coisas e nem esse telefonema pude terminar sem que um deles acabasse a chorar aos meus pés porque alguma coisa não corria como esperado. Eles são pequenos, eu sei. Eu não os culpo de nada: afinal, se a mim me custa estar em casa sem contactar com outras pessoas, o que pensar então deles que passavam os dias rodeados de amigos e professores e de repente agora só me têm a mim, muitas vezes stressada e abalada emocionalmente? Vamos gerindo, é o que me tem feito não desanimar tanto.

De manhã, temos as horas dos trabalhos de casa que cumprimos religiosamente para manter alguma noção de normalidade na vida deles. Não sou especialmente exigente nas correções, quero apenas que eles trabalhem um pouco. Depois, um pouco de Sol no nosso pequeno jardim (as vezes que eu agradeço viver aqui e não num prédio de apartamentos) a tentar que eles corram um bocado e respirem fundo e não sintam que estão efectivamente numa prisão. O VIcente e a Amália tem sentido muito o impacto destes tempos e querem falar e ver os amigos, o Augusto não parece dar-se conta de nada. Se pensar no que quero quando tudo isto acabar, posso resumi-lo numa coisa: quero que os meus filhos possam voltar a descer a rua, contentes por irem para a escola. Sinto que lhes está a ser roubada uma parte tão importante da vida mas sei que é para o bem de todos nós.

Tenho cozinhado como não fazia há muito e coisas mais old fashion, como umas boas ervilhas com ovos escalfados. AInda não se sente falta de nenhum produto nos supermercados e temos tentado ir às compras o menos possível. Já fiz pão duas vezes, temos tido fruta fresca com frequência. Quando tudo começou, este era o meu maior medo (burguês): não termos acesso a comida fresca. Já se assistiu a alguns desentendimentos à porta dos supermercados mas as coisas continuam tranquilas.

Há ainda outros medos, ligados especificamente ao Luxemburgo. Primeiro, o da disponibilidade dos profissionais de saúde. Aqui, 70% dos profissionais de saúde vêm dos países fronteiriços, especialmente os enfermeiros e auxiliares e isso representa dois riscos: se as fronteiras fecharem completamente, estes profissionais podem ser impedidos de vir trabalhar e se a situação nos seus países de origem se agravar ainda mais, eles podem ser requisitados para trabalhar no seu país natal. O sistema de saúde luxemburguês funciona normalmente bem mas corre aqui duplo risco de colpasar. E depois, ligado com o meu medo da falta de produtos frescos, o encerramento total de fronteiras ia piorar com toda a certeza esta situação: o Luxemburgo é demasiado pequeno e, logo, não é auto-suficiente. *respirar fundo*

Por todo o lado, há pessoas a insipirar-me nestes tempos surreais. Há as mães que têm tudo programado e imenso jeito para os trabalhos manuais e há as mães que simplesmente vão deixando andar. Há quem fique em casa de pijama e há quem se arranje sempre como se fosse sair. Há quem cante ou leia para nós que estamos também em casa. Há arquivos de teatro e de cinema a abrirem ao público, há orquestras a disponibilizarem concertos também. Há editoras a oferecerem livros online, há aulas de yoga, crossfit e pilates, há sessões de cozinha ou simplesmente as pessoas com os seus diários também. Tenho tentado consumir menos informação mas às vezes é difícil não procurar as actualizações em tempo real. Valem-me três crianças cheias de vida, muitas vezes aborrecidas e a suspirar pela vida de antes mas que têm enfrentado este isolamento com aquela naturalidade que só elas conseguem. Há um marido que nunca desespera e consegue sempre olhar para o lado positivo das coisas, mesmo quando ele não parece existir. Há a família que está sempre lá, cumprindo a sua parte, dando aquela forcinha à distância. Há amigos que nos ligam oito anos depois da última vez que nos vimos só para saber como está tudo. E há aquelas noticias pontuais de que a China volta muito lentamente à normalidade. Eu sei que talvez nunca mais possamos ser normais mas caraças, vou chorar no dia em que os meus filhos voltarem a descer a rua para a escola.