Quarentena, segunda semana

Não está fácil. Saí pela última vez de casa na Sexta, dia 14 de Março, há dez dias atrás. Devo corrigir: já saímos algumas vezes para o jardim para que eles (e eu) possam apanhar um pouco de Sol, ar fresco, esticar bem as pernas e gastar alguma da energia que vamos acumulando em casa. De resto, só os vi (pessoalmente) a eles e ao Mário desde esse dia.

Vi no outro dia uma fotografia de um grafitti que dizia que não devíamos romantizar a quarentena e, envergonhada, concordei com isso. Focados nos nossos agregados, nos nossos problemas de primeiro mundo, é simples esquecer que há quem não tenha já o que comer ou quem já não vá receber o próximo ordenado. Há quem esteja sozinho e vulnerável neste período, coisa que nunca tinha antes considerado antes de falar com a minha irmã, isolada sozinha há outros tantos dias ou com os meus pais e avó, agora impedidos de se verem diariamente e em grupos de risco diferentes. Há quem tenha sido abandonado em lares, há quem morra sozinho em hospitais sobrelotados, há quem se despeça dos familiares moribundos através de videochamada, há muitos que nem podem chorar devidamente os mortos.

Tenho aguentado o barco porque eles os três não podem ver-me triste a toda a hora mas às vezes as coisas são mais fortes do que eu. Há demasiada tristeza no Mundo para eu conseguir aguentar um dia sem chorar. E também há tantos gestos de bondade, de união e de salvação - são demasiadas emoções para uma pessoa como eu gerir em distanciamento social. A maioria dos meus colegas continua a trabalhar a partir de casa e ainda conseguem manter uma certa rotina mental mas eu, depois de tentar várias vezes trabalhar com eles em casa, desisti: preciso de muita concentração e não posso estar a ser interrompida pelas brigas, pelos gritos ou pelos três quando estão simplesmente aborrecidos. A minha chefe ligou-me num dia para sabe como iam as coisas e nem esse telefonema pude terminar sem que um deles acabasse a chorar aos meus pés porque alguma coisa não corria como esperado. Eles são pequenos, eu sei. Eu não os culpo de nada: afinal, se a mim me custa estar em casa sem contactar com outras pessoas, o que pensar então deles que passavam os dias rodeados de amigos e professores e de repente agora só me têm a mim, muitas vezes stressada e abalada emocionalmente? Vamos gerindo, é o que me tem feito não desanimar tanto.

De manhã, temos as horas dos trabalhos de casa que cumprimos religiosamente para manter alguma noção de normalidade na vida deles. Não sou especialmente exigente nas correções, quero apenas que eles trabalhem um pouco. Depois, um pouco de Sol no nosso pequeno jardim (as vezes que eu agradeço viver aqui e não num prédio de apartamentos) a tentar que eles corram um bocado e respirem fundo e não sintam que estão efectivamente numa prisão. O VIcente e a Amália tem sentido muito o impacto destes tempos e querem falar e ver os amigos, o Augusto não parece dar-se conta de nada. Se pensar no que quero quando tudo isto acabar, posso resumi-lo numa coisa: quero que os meus filhos possam voltar a descer a rua, contentes por irem para a escola. Sinto que lhes está a ser roubada uma parte tão importante da vida mas sei que é para o bem de todos nós.

Tenho cozinhado como não fazia há muito e coisas mais old fashion, como umas boas ervilhas com ovos escalfados. AInda não se sente falta de nenhum produto nos supermercados e temos tentado ir às compras o menos possível. Já fiz pão duas vezes, temos tido fruta fresca com frequência. Quando tudo começou, este era o meu maior medo (burguês): não termos acesso a comida fresca. Já se assistiu a alguns desentendimentos à porta dos supermercados mas as coisas continuam tranquilas.

Há ainda outros medos, ligados especificamente ao Luxemburgo. Primeiro, o da disponibilidade dos profissionais de saúde. Aqui, 70% dos profissionais de saúde vêm dos países fronteiriços, especialmente os enfermeiros e auxiliares e isso representa dois riscos: se as fronteiras fecharem completamente, estes profissionais podem ser impedidos de vir trabalhar e se a situação nos seus países de origem se agravar ainda mais, eles podem ser requisitados para trabalhar no seu país natal. O sistema de saúde luxemburguês funciona normalmente bem mas corre aqui duplo risco de colpasar. E depois, ligado com o meu medo da falta de produtos frescos, o encerramento total de fronteiras ia piorar com toda a certeza esta situação: o Luxemburgo é demasiado pequeno e, logo, não é auto-suficiente. *respirar fundo*

Por todo o lado, há pessoas a insipirar-me nestes tempos surreais. Há as mães que têm tudo programado e imenso jeito para os trabalhos manuais e há as mães que simplesmente vão deixando andar. Há quem fique em casa de pijama e há quem se arranje sempre como se fosse sair. Há quem cante ou leia para nós que estamos também em casa. Há arquivos de teatro e de cinema a abrirem ao público, há orquestras a disponibilizarem concertos também. Há editoras a oferecerem livros online, há aulas de yoga, crossfit e pilates, há sessões de cozinha ou simplesmente as pessoas com os seus diários também. Tenho tentado consumir menos informação mas às vezes é difícil não procurar as actualizações em tempo real. Valem-me três crianças cheias de vida, muitas vezes aborrecidas e a suspirar pela vida de antes mas que têm enfrentado este isolamento com aquela naturalidade que só elas conseguem. Há um marido que nunca desespera e consegue sempre olhar para o lado positivo das coisas, mesmo quando ele não parece existir. Há a família que está sempre lá, cumprindo a sua parte, dando aquela forcinha à distância. Há amigos que nos ligam oito anos depois da última vez que nos vimos só para saber como está tudo. E há aquelas noticias pontuais de que a China volta muito lentamente à normalidade. Eu sei que talvez nunca mais possamos ser normais mas caraças, vou chorar no dia em que os meus filhos voltarem a descer a rua para a escola.

Primeiros dias de quarentena

Nunca antes tive tanto a sensação de que há um antes e um depois. Nunca tive a sensação de que não posso sair desta sem ser uma pessoa totalmente diferente.

Estamos em casa desde Sábado. Não estou propriamente triste com isso porque afinal é estar no sítio onde me sinto melhor com todo o conforto e os pequenos luxos da vida normal mas é uma situação psicologicamente inédita para a maioria das pessoas que conheço. Nós nunca vivemos assim: supermercados a racionar comida, polícia a controlar os movimentos desnecessários dos cidadãos e o medo, o medo a toda a hora de que os próximos somos nós ou que podemos estar a contribuir para a doença de outras pessoas.

São cinco dias em casa com três crianças que, no início, estavam felizes com a perspectiva de “férias” da escola mas que começam a acusar este isolamento e a perguntar quando voltam às aulas. Eu gostava de lhes responder que temos mais uma semana e meia pela frente mas os sinais por todo o lado é que será muito mais tempo e eu não sei lidar com isso,

Ontem chorei de tristeza pela primeira vez. Por não saber quando vai acabar este distanciamento social, pela ideia das prateleiras vazias e das filas intermináveis, pela hipótese de estarmos meses assim, por estar longe da minha família e sem poder tomar conta de ninguém, pelas pessoas que morrem sozinhas, pelo pessoal de saúde que corre tantos riscos por nós, pelo pessoal dos supermercados e da distribuição, pelos governos que parecem saber exactamente o que fazer e pelos outros que ainda navegam à vista, pela nossa falta de liberdade. Procuro todos os dias sinais de esperança: as coisas a melhorar na China, os modelos matemáticos que ajudam a perceber a trajectória do vírus, os potenciais primeiros ensaios para uma vacina. E todos os dias me comovo com os vizinhos que cantam nas varandas, com as comunidades recém formadas para ajudar quem mais precisa, com as fábricas têxteis que escolhem desistir do seu negócio temporariamente para produzir material hospitalar, pelos artistas que no meio da incerteza difundem os seus concertos, os seus filmes, a sua arte para ajudar a aliviar a solidão de tanta gente. Comovo-me com as águas límpidas de Veneza, com a drástica diminuição da poluição, pelas avenidas vazias onde o silêncio impera e penso como isto tudo vai terminar numa inequívoca crise financeira e económica, um desastre sem precedentes, com tanta gente a precisar de salvação.

Percebo que muitos se insurjam com esta ideia de estado de emergência: a maioria de nós não sabe o que é viver longe dos outros e sem poder exercer todas as liberdades que nos foram concedidas por quem lutou antes de nós. Mas aceito esta perda de direitos temporária porque não imagino outra alternativa para estancar esta sangria. Os números são assustadores e não consigo entender como é que ainda não nos tocou a nós. Tiro a minha temperatura todos os dias e desconfio se tusso ou se me sinto mais cansada. Viver sem saber se se tem um inimigo em casa é brutal e cansativo.

A persiana da cozinha está avariada e agora o dia começa perto das seis e meia da manhã. Eles vêem a luz do dia e exigem que nos levantemos. Acordo várias vezes à noite para os tapar ou porque a minha cabeça continua ocupada pela noite fora. Sentia um aperto no peito que só acalmou depois de decretarem o fecho das escolas. Estou cansada e se calhar ainda nem passou sequer o começo. Estou triste e a fazer um esforço gigante para não me deixar abater. Busco coragem também na família, nos amigos e nos estranhos que partilham online como estão a viver este momento inimaginável. Olho para as nossas fotografias e penso “Ainda há uma semana não saímos de casa porque tínhamos preguiça…”. O grande exercício para mim não é entreter-me ou entreter os miúdos: é pensar que isto não vai durar para sempre, quando os sinais dizem o contrário.

Felizmente temos um pequeno jardim, onde podemos pelo menos apanhar ar e um pouco de Sol. E assim eu posso enganar esta sensação estranguladora de estar presa.

Nós vivemos numa área residencial muito calma. Não noto nenhuma diferença para os dias “normais”. Talvez apenas mais carros estacionados à porta de cada casa ou a ausência da agitação das manhãs de escola, quando o miúdos descem a rua de trotinete. De resto, silêncio as usual.