Alter do Chão -> Serra de São Mamede
A última parte das nossas férias não foi exactamente uma parte mas muitos dias no meio de outros dias que passámos noutros sítios. Às vezes um dia de intervalos entre diferentes piscinas, noutras os dias suficientes para chegarmos e também para fazermos as malas e seguirmos de volta a casa.
Disclaimer prévio: acho que, na nossa situaçáo actual (a normal, nem sequer estou a contar com as consequências da pandemia), não conseguiria voltar a viver em Portalegre. Mas quando lá estou, parece que se torna difícil pensar noutra coisa. Não digo viver em Portalegre cidade mas sinto que onde estaríamos todos bem seria algures à volta da cidade, mais especificamente algures no Parque Natural da Serra de São Mamede (sim, eu sei quão difícil seria fazer isso acontecer…).
Digo que isto dificilmente acontecerá por duas razões, ambas relacionadas com o emprego: por um lado, acho que seria impossível eu e o Mário encontrarmos trabalhos em simultâneo na região e, quando digo trabalho, falo em fazermos mais ou menos o mesmo que fazemos agora, nem estou a falar de empregos de sonho. E por outro lado, esses trabalhos dificilmente nos dariam as oportunidades que temos agora: no centro da Europa, é fácil cruzar fronteiras e estarmos noutras capitais europeias quase no tempo que demoramos a ir de Portalegre a Lisboa, ao mesmo tempo que o nosso nível de vida, muito longe de extravagante ou de luxo, nos permite até sonhar em continuar a viajar para sítios mais longínquos.
Admiro com fervor as pessoas que escolheram ficar ou até as pessoas que, vindas de outra cidade ou até mesmo de outros países, escolheram viver ali. Já eu sinto que passei muitos anos a tentar fugir e agora estou demasiado longe para encetar qualquer tentativa de regresso. Mas a vida (e especialmente os últimos seis meses) ensinou-me a nunca dizer nunca, portanto até eu espero com muita curiosidade os próximos capítulos.
Nestas férias, decidimos acordar bem cedo nalguns dias para fazer um pouco exercício: quando às seis da manhã já fazem vinte e oito graus, não há outro remédio senão aproveitar o ar da serra antes que o calor torne qualquer movimento impossível. E então subimos os dois, ele a correr, eu a andar mas com vigor, até nos encontramos no miradouro. Lá em baixo, Portalegre ainda dormia e na estrada apenas nos cruzámos com um ou outro madrugadores. Em baixo, o casario antigo, a imperdível Sé e as inconfundíveis chaminés. Mais longe, planície a perder de vista, num dos dias debaixo de uma trovoada seca.
Fomos ouvindo a serra a acordar. Os chocalhos das ovelhas que saíam para começar o dia no campo, os cães a ladrar de aldeia para aldeia como se trocassem informações preciosas pela manhã, animais incógnitos a revolver arbustos pela calada, o coaxar das rãs perto da água. É também um regalo para os olhos: as vinhas carregadas de uvas beijadas pela luz tímida da madrugada a fazer-se dia, tractores a lavrarem e a envolverem-se no pó misterioso que emana da terra, estradas vazias e muitas vezes esquecidas, casas restauradas e casas abandonadas, contra-minas que explorámos quando ainda vivíamos aqui. Tudo está carregado de recordações para nós, é difícil não termos uma história para cada quilómetro de caminho que fazemos a pé.
A meio da manhã, o ar já se tornou irrespirável. Nós já bebemos café no Alentejano ou comemos massa frita na praça. Naquela altura, o coronavírus ainda parecia longe da cidade e as esplanadas estavam muitas vezes cheias e sem permitir o distanciamento necessário. O porto de Beirute explodiu e nós vimos os momentos que se seguiram enquanto comíamos uma empada. Enchemos um par de sacos com as coisas que nos fazem falta: linguiça para fritar, chouriço e paio, duas farinheiras, xarope de fruta, dois bolos fintos e seis garrafas de tinto alentejano. Enchemos o peito deste ar pesado e quente vezes suficientes para aguentar mais uns meses. E um dia, ainda a manhã não tinha despontado, enfiámos tudo num carro (filhos ensonados e garrafões de azeite incluídos e deixámos a serra e o país para trás.