2020, um balanço: as viagens possíveis

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está: quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

O meu ano em livros

Muitas pessoas que conheço lamentaram este ter sido um ano em que tiveram pouca disponibilidade mental para ler. É perfeitamente compreensível, acho que todos tínhamos demasiadas coisas em que pensar e muitas vezes essas coisas ocupavam todo o espaço disponível e todos os momentos de sossego. Eu comprometi-me no início do ano a ler doze livros, um por cada mês do ano. Apesar de não ser um objectivo ambicioso, era o número que eu achava possível, realista depois de ter falhado o meu objectivo em 2019.

Faltam dois dias para o ano acabar e eu li quinze livros! Potencialmente, ainda posso fechar o décimo sexto antes da meia-noite de quinta-feira mas já me dou por feliz com estes já terminados. A minha leitura em 2020 fez-se maioritariamente nos momentos antes de adormecer, já deitada na nossa cama. Todos os dias de confinamento com filhos em casa e sem poder sair para muitos sítios tornaram este desafio um pouco mais difícil mas não impossível! Deixo-vos aqui umas breves impressões sobre o que li no ano da pandemia, sem qualquer ordem específica (senão a da torre que fotografei na minha banca de cabeceira).

  1. Flecha, Matilde Campilho: comprei este livro durante as nossas férias de Verão e foi o primeiro livro dela que li. Sei que teve um começo muito aplaudido no campo da poesia e já tinha vontade de experimentar a ler. É um livro muito interessante e enigmático, composto por micro contos, aparentemente independentes mas atravessados por uma flecha. Dava um belo conjunto de curtas-metragens, tal é a capacidade da Matilde de descrever sucintamente uma cena, fazendo-nos sentir perante um quadro cheio de pormenores. Also, adoro a voz dela (é a voz deste anúncio) e na minha cabeça cada página foi lida por ela.

  2. 12 Rules for Life, Jordan B. Peterson: comprei este livro na Waterstones em Twickenham, na última viagem de trabalho que fiz em Janeiro deste ano. Li as primeiras páginas a jantar sozinha numa pizzaria perto do hotel, acompanhada de um copo solitário de vinho tinto. O pretexto do livro é muito interessante; doze regras para viver uma vida com menos caos. Esta questão do caos foi o que me fez comprá-lo, porque é assim que sinto a nossa casa às vezes. O autor enumera cada regra e faz como que um trabalho de arqueologia intenso e incrivelmente detalhado para explicar cada regra ao longo dos tempos e mistura biologia com teologia e psicologia, o que torna o livro extremamente denso e um pouco difícil de ler. Por si só, cada regra faz todo o sentido mas deixo-vos as que mais me falaram ao coração (e ao cérebro, vá):

    Do not let your children do anything that makes you dislike them.

    Set your house in perfect order before you criticize the world.

  3. Seven signs of life, Aoife Abbey: há quem goste de histórias de crimes reais, eu gosto de histórias de médicos reais. Aoife Abbey é uma médica dos cuidados intensivos e conta episódios reais passados na sua incursão por diversos hospitais. Alguns doentes morrem, outros sobrevivem e têm o direito como de renascer. Lê-se facil e rapidamente, faz pensar muito na morte e na imprevisibilidade da vida, desperta sentimentos de esperança mas também de tristeza e resignação.

  4. My sister, the serial killer, Oyinkan Braithwaite: um livro mais ou menos curto que também trouxe dos subúrbios de Londres e que comprei pela capa e pelo título (sim, eu faço isso e, apesar de já ter apanhado algumas desilusões, normalmente não me engano!). Conta as história de duas irmãs nigerianas muito diferentes e ligadas pelo sangue (metaforica e literalmente falando) e é um livro divertido, especialmente se considerarmos a permissa algo inesperada que despoleta toda a história.

  5. Wow, no thank you, Samantha Irby: decididamente um dos meus preferidos do ano e a autora passou também a ser uma das minhas preferidas! Samantha escreve ensaios sobre as coisas banais da vida, sobre a sua infância traumática e a sua relação com os seus pais, sobre os seus hábitos de consumo, sobre relações mas tudo sob um ponto de vista auto-depreciativo que eu simplesmente adoro. Ela ri-se de si mesma muito antes de qualquer outra pessoa, ela apresenta-se com todos os seus defeitos físicos e de carácter e bebe muito da cultura pop. Adoro, já tinha lido outro livro e tenho o terceiro em fila de espera.

  6. My year of rest and relaxation, Ottessa Moshfegh: uma autêntica perda de tempo, na minha opinião. A história é a de uma rapariga que, perdida entre uma família ausente e a falta de horizontes, decide passar um ano inteiro sem fazer nada e, sempre que possível, a dormir. Percebo mais ou menos o hype - afinal, a protagonista é uma espécie de millennial encharcada em comprimidos para dormir - mas não foi de todo uma leitura agradável e nem sequer útil.

  7. White Fragility. Robin Diangelo: neste ano louco em todos os aspectos, também não fui imune às grande questões raciais, especiamente à problemática Black Lives Matter. A partir da premissa de que somos todos racistas (em que eu acredito profundamente porque sinto que fui educada e formada numa sociedade inerentemente desigual e racista), quis procurar mais literatura sobre o assunto e este foi um dos livros que comprei. É um livro interessante mas acho que se resume a um princípio: nós, brancos, não conseguimos admitir que somos racistas porque isso faz de nós imediatamente más pessoas. Então, para não nos sentirmos assim, acabamos por não nos questionarmos o suficiente e por perpetuar um sistema que oprime as minorias. Bom ponto de partida mas acho que há literatura muito mais pertinente e interessante online.

  8. Fiebre Tropical, Juliana Delgado Lopera: um livro muito curioso mas que falhou um pouco no desenvolvimento da história e, particularmente, no seu final. Conta a história de Francisca, uma adolescente colombiana que se vê arrastada para Miami pela sua mãe. Procuram uma vida melhor, ainda o tal Sonho Americano e acabam ligadas a uma igreja evangélica que consome tudo à sua volta. Francisca apaixona-se pela filha do pastor, Carmen, mas este amor nunca se materializa. A parte mais interessante do livro é a maneira como Juliana alterna a voz narradora entre o Inglês e o Castelhano (na sua variante colombiana), marcado o ritmo com as suas interjeições, regionalismos e muita salsa!

  9. Myra, Maria Velho da Costa: nunca tinha lido nada da autora e foi a notícia da sua morte que me empurrou para escolher um livro dela. Myra é a história de uma rapariga de Leste que em Portugal encontra uma vida cheia de abusos, enganos mas também de amor e companheirismo e fantasia. Acompanhada por Rambo, um cão que ela mesma salva de uma vida de violência, Myra é acolhida em casa de gente rica mas acaba por fugir, caminhando pela planície alentejana em direcção ao Sul até encontrar o seu príncipe. Depois deste encontro, a vida de Myra é feita de mistério, felicidade e, finalmente, de dor e tragédia. Um livro que foi como um murro no estômago e que me deu vontade de ler outras obras da mesma autora.

  10. The Silence, Dom Delillo: o pior livro que li este ano. E nos últimos anos, para dizer a verdade. A ideia (um brutal e inesperado corte de electricidade deixa cidades inteiras sem comunicações e faz mesmo despenhar aviões) parece muito interessante mas depois as personagens soltam apenas frases sem sentido, citações de Albert Einstein e não acontece nada. Uma grande decepção.

  11. In the dream house, Carmen Maria Machado: um livro muito interessante e emocional sobre os abusos psicológicos e violência doméstica numa relação queer. É, ao mesmo tempo, um documento teórico sobre um fenómeno ainda pouco estudado (a percepção geral é a de que a violência é mais provável entre dois homens e não entre duas mulheres) e um testemunho pessoal e poético (mesmo na sua dureza) da autora.

  12. The lying life of adults, Elena Ferrante: para ir directa ao assunto, foi uma grande desilusão. Eu não sou grande fã da colecção d’a Amiga Genial (apenas li ainda o primeiro volume) mas caí de amores pela autora quando li Os dias do abandono. Que livro tão sufocante e angustiante e que, ao mesmo tempo, nos oferece um espelho para as nossas próprias relações e falhanços na maternidade e nos faz sofrer com os fantasmas daquela mulher. Este último livro começa bem, com a sugestão de que existe um terrível segredo entre o pai da protagonista e a sua irmã para acabar sem grandes explicações e com uma das piores cenas de iniciação sexual que alguma vez li (não que tenha lido muitas mas esta foi tão desenxabida e quase enfiada a ferros antes do fim da história que me fez desejar não a ter lido). Bravo para a maneira como a autora descreve as várias Nápoles, como descreve os pequenos mafiosos que não sabem ouvir um não e até a maneira viciosa como a protagonista decide que quer o namorado da amiga mas isto precisava de uns quantos volumes a mais.

  13. You were born for this, Chani Nicholas: este foi o ano em que eu, sem vergonha o assumo, me interessei bastante por astrologia. Talvez porque a ausência de guia para navegar uma pandemia me tenha feito tremer, talvez porque estou a envelhecer e não consigo encontrar conforto na religião - li umas coisas sobre astrologia, pesquisei sobre o assunto e fiz até leituras da minha carta astral. Tudo com uma boa dose de cepticismo, evidentemente, mas também com uma certa dose de porque não?.

  14. Over the top, Jonathan Van Ness: foi dos primeiros livros que li este ano. É uma auto-biografia, leve, divertida e com algumas revelações inesperadas mas que só faz totalmente sentido se forem fãs do Queer Eye (a série na Netflix), em que ele é um dos protagonistas. Eu sou fã da série e também dele e dos seus maneirismos over the top e por isso li este livro sempre com a voz dele na cabeça. Ideal para ler no Verão :)

  15. Apropos of Nothing, Woody Allen: conheço bem as polémicas em que Woody Allen tem estado envolvido mas digo já: acho que sou daquelas pessoas que conseguem dissociar um criador e a sua obra da sua vida pessoal. Digo acho porque para mim não é uma posição definitiva e continuo aberta a novos factos - tudo para evitar a cancel culture, de que não sou muito fã. Dito isto, este é um livro divertido e muito interessante, às vezes um pouco difícil de acompanhar (quando ele faz name dropping e conta tudo sobre produtores e escritores com quem trabalhou nos anos 50, por exemplo). Inevitavelmente, traz à luz a sua perspectiva no caso que o opõe a Mia Farrow, perspectiva essa que me parece sincera, lógica e suficientemente defendida. E fez-me sorrir com a idade que ele repete ao longo do livro: ele não é um tipo intelectual, só alguém que faz o que gosta e que sempre soube adaptar-se ao meio onde se movia com algumas generalidades e ideias de sketches na manga.

2020, um balanço: uma obsessão

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

As eleições americanas

Créditos: Bloomberg (vista aqui)

É um bocado estranho, eu sei, mas eu estive e ainda estou obcecada pelas eleições presidencias nos Estados Unidos. Sinto-me estranha porque obviamente não sou cidadã nem sequer residente no país mas acompanho com muito entusiasmo e fervor tudo o que se tem passado desde o início da campanha eleitoral.

O meu interesse era apenas um: presenciar o momento em que Donald Trump perdia a presidência. Não me importava muito contra quem (confesso que o meu coração de esquerda torcia pelo Bernie Sanders, ao mesmo tempo que compreendia que ele é demasiado radical para ter qualquer hipótese nos Estados Unidos) mas hoje, mais de um mês depois do dia das eleições, estou até contente que tenha sido Joe Biden a ganhar.

Estas eleições presidenciais eram apenas sobre uma coisa: decência. Para mim, não estava em causa um programa partidário, a competência dos candidatos mas única e exclusivamente a troca de um presidente amoral, corrupto e sem um pingo de humanidade por uma pessoa “normal”. Uma pessoa “normal” também tem defeitos, não é isenta de escrutínio, não vai de repente resolver os problemas raciais, sociais ou económicos de um país inteiro mas vai, pelo menos, liderar pelo exemplo em busca da melhoria das condições de vida de todos os cidadãos.

Essa pessoa “normal” não vai demonizar imigrantes nem nacionalidades inteiras, não vai incitar ao ódio racial, não vai promover linchamentos nem actos de terrorismo. Uma pessoa “normal” rodeia-se de especialistas nas mais diferentes matérias, com provas dadas e tenta governar o melhor que sabe e que o conhecimento de um gabinete permite. Uma pessoa “normal” compromete-se a ajudar as empresas que tanto têm sofrido durante este mas também com os seus cidadãos (queiram term votado nessa pessoa ou não) que estão a sofrer em massa com o desemprego, a fome a a falta de acesso a cuidados médicos generalizados. Uma pessoa “normal” passa o seu tempo a governar, a informar-se, a tomar decisões e não a gritar inanidades e mentiras no Twitter.

Uma pessoa “normal” não coloca a sua família em postos para os quais essa família não tem qualquer qualificação e não povoa os seus gabinetes com pessoas desqualificadas apenas porque elas lhe servirão os seu propósito final: tratar um país inteiro como uma das suas empresas e enriquecer a todo o custo. Uma pessoa “normal” compreende qual é o seu papel e defende que o governo é totalmente of the people, by the people, for the people.

No dia 3 de Novembro, ciente de que os resultados não iriam ser conhecidos ness dia (e provavelmente Trump estaria à frente, já que os votos presenciais são contados primeiro), não liguei muito ao processo eleitoral. Sabia que as contagens iam demorar, era natural se pensarmos também nas quantidades de votos enviados pelo correio antes do dia das eleições. E no dia 7 aconteceu: amigos enviaram mensagem a confirmar a vitória de Biden (ainda apenas nas projecções) e eu senti imediamente um alívio e uma grande alegria. Emocionei-me a ver as pessoas que festejavam nas ruas, comovi-me com a ideia de que a democracia tinha cumprido o seu papel e as pessoas tinham finalmente decidido eleger a pessoa “normal”. Sabia que ainda não eram os resultados finais mas estava longe de imaginar o que iria acontecer até hoje, mais de um mês depois e a escassos 3 dias do colégio de eleitores depositar finalmente os votos de cada estado.

Trump tem alimentado a ideia que o resultado destas eleições foi falsificado sem nunca apresentar nenhuma prova. A sua equipa jurídica (que já mudou várias vezes e que, numa espécie de castigo bíblico,mestá agora em grande parte infectada com COVID) já perdeu 56 processos em tribunal, todos com a mesma justificação: não existe nenhuma prova de que tenha havido fraude. Nem mesmo os juízes que Trumpo nomeou para o Supremo Tribunal aceitaram sequer ouvir um dos casos, justificando-se na mesma maneira. Naquele que muitos pensam ser a última tentiva de golpe, vários governantes de pelo menos 17 estados pediram ontem para que o Supremo Tribunal elimine ou desclassifique milhões de votos legalmente válidos e inverta o resultado das eleições. Está por ouvir a decisão do tribunal mas muitos pensam que é apenas uma tentativa de alguns governantes republicanos se mostrarem leais a Trump, que no fundo destruiu o Partido Republicano para o transformar num apenas num culto de uma personalidade vil e nojenta.

(Se chegaram até aqui, parabéns e obrigada pela paciência! Mas podem mesmo ver como isto me entusiasma.)

Eu não sou, no geral, uma pessoa de convicções inalteráveis: compreendo que as coisas podem mudar, as pessoas podem errar e corrigir a sua trajectória e não ponho a mão no fogo por ninguém. Por isso, não acho que Biden seja o salvador da pátria e que, com ele, todos os profundos e divisivos problemas dos Estados Unidos irão desaparecer. Mas o estado das coisas é tal que ele parece ser uma pessoa decente e, neste momento, decência é tudo aquilo que parecem precisar os Americanos. E nós todos, porque o que acontece lá, tem o condão de nos influenciar também. E por isso, desejo aos Americanos o mesmo que desejo para qualquer pessoa do mundo: um governo de pessoas decentes, capazes e inteligentes, que não sobrepõem os interesses económicos aos interesses dos seus cidadãos. Com defeitos, é evidente, mas com aquela capacidade de se pôr na pele dos outros. E o dia 20 de Janeiro nunca mais chega!