Primeiros dias de quarentena
Nunca antes tive tanto a sensação de que há um antes e um depois. Nunca tive a sensação de que não posso sair desta sem ser uma pessoa totalmente diferente.
Estamos em casa desde Sábado. Não estou propriamente triste com isso porque afinal é estar no sítio onde me sinto melhor com todo o conforto e os pequenos luxos da vida normal mas é uma situação psicologicamente inédita para a maioria das pessoas que conheço. Nós nunca vivemos assim: supermercados a racionar comida, polícia a controlar os movimentos desnecessários dos cidadãos e o medo, o medo a toda a hora de que os próximos somos nós ou que podemos estar a contribuir para a doença de outras pessoas.
São cinco dias em casa com três crianças que, no início, estavam felizes com a perspectiva de “férias” da escola mas que começam a acusar este isolamento e a perguntar quando voltam às aulas. Eu gostava de lhes responder que temos mais uma semana e meia pela frente mas os sinais por todo o lado é que será muito mais tempo e eu não sei lidar com isso,
Ontem chorei de tristeza pela primeira vez. Por não saber quando vai acabar este distanciamento social, pela ideia das prateleiras vazias e das filas intermináveis, pela hipótese de estarmos meses assim, por estar longe da minha família e sem poder tomar conta de ninguém, pelas pessoas que morrem sozinhas, pelo pessoal de saúde que corre tantos riscos por nós, pelo pessoal dos supermercados e da distribuição, pelos governos que parecem saber exactamente o que fazer e pelos outros que ainda navegam à vista, pela nossa falta de liberdade. Procuro todos os dias sinais de esperança: as coisas a melhorar na China, os modelos matemáticos que ajudam a perceber a trajectória do vírus, os potenciais primeiros ensaios para uma vacina. E todos os dias me comovo com os vizinhos que cantam nas varandas, com as comunidades recém formadas para ajudar quem mais precisa, com as fábricas têxteis que escolhem desistir do seu negócio temporariamente para produzir material hospitalar, pelos artistas que no meio da incerteza difundem os seus concertos, os seus filmes, a sua arte para ajudar a aliviar a solidão de tanta gente. Comovo-me com as águas límpidas de Veneza, com a drástica diminuição da poluição, pelas avenidas vazias onde o silêncio impera e penso como isto tudo vai terminar numa inequívoca crise financeira e económica, um desastre sem precedentes, com tanta gente a precisar de salvação.
Percebo que muitos se insurjam com esta ideia de estado de emergência: a maioria de nós não sabe o que é viver longe dos outros e sem poder exercer todas as liberdades que nos foram concedidas por quem lutou antes de nós. Mas aceito esta perda de direitos temporária porque não imagino outra alternativa para estancar esta sangria. Os números são assustadores e não consigo entender como é que ainda não nos tocou a nós. Tiro a minha temperatura todos os dias e desconfio se tusso ou se me sinto mais cansada. Viver sem saber se se tem um inimigo em casa é brutal e cansativo.
A persiana da cozinha está avariada e agora o dia começa perto das seis e meia da manhã. Eles vêem a luz do dia e exigem que nos levantemos. Acordo várias vezes à noite para os tapar ou porque a minha cabeça continua ocupada pela noite fora. Sentia um aperto no peito que só acalmou depois de decretarem o fecho das escolas. Estou cansada e se calhar ainda nem passou sequer o começo. Estou triste e a fazer um esforço gigante para não me deixar abater. Busco coragem também na família, nos amigos e nos estranhos que partilham online como estão a viver este momento inimaginável. Olho para as nossas fotografias e penso “Ainda há uma semana não saímos de casa porque tínhamos preguiça…”. O grande exercício para mim não é entreter-me ou entreter os miúdos: é pensar que isto não vai durar para sempre, quando os sinais dizem o contrário.
Felizmente temos um pequeno jardim, onde podemos pelo menos apanhar ar e um pouco de Sol. E assim eu posso enganar esta sensação estranguladora de estar presa.
Nós vivemos numa área residencial muito calma. Não noto nenhuma diferença para os dias “normais”. Talvez apenas mais carros estacionados à porta de cada casa ou a ausência da agitação das manhãs de escola, quando o miúdos descem a rua de trotinete. De resto, silêncio as usual.