Primeiros dias de quarentena

Nunca antes tive tanto a sensação de que há um antes e um depois. Nunca tive a sensação de que não posso sair desta sem ser uma pessoa totalmente diferente.

Estamos em casa desde Sábado. Não estou propriamente triste com isso porque afinal é estar no sítio onde me sinto melhor com todo o conforto e os pequenos luxos da vida normal mas é uma situação psicologicamente inédita para a maioria das pessoas que conheço. Nós nunca vivemos assim: supermercados a racionar comida, polícia a controlar os movimentos desnecessários dos cidadãos e o medo, o medo a toda a hora de que os próximos somos nós ou que podemos estar a contribuir para a doença de outras pessoas.

São cinco dias em casa com três crianças que, no início, estavam felizes com a perspectiva de “férias” da escola mas que começam a acusar este isolamento e a perguntar quando voltam às aulas. Eu gostava de lhes responder que temos mais uma semana e meia pela frente mas os sinais por todo o lado é que será muito mais tempo e eu não sei lidar com isso,

Ontem chorei de tristeza pela primeira vez. Por não saber quando vai acabar este distanciamento social, pela ideia das prateleiras vazias e das filas intermináveis, pela hipótese de estarmos meses assim, por estar longe da minha família e sem poder tomar conta de ninguém, pelas pessoas que morrem sozinhas, pelo pessoal de saúde que corre tantos riscos por nós, pelo pessoal dos supermercados e da distribuição, pelos governos que parecem saber exactamente o que fazer e pelos outros que ainda navegam à vista, pela nossa falta de liberdade. Procuro todos os dias sinais de esperança: as coisas a melhorar na China, os modelos matemáticos que ajudam a perceber a trajectória do vírus, os potenciais primeiros ensaios para uma vacina. E todos os dias me comovo com os vizinhos que cantam nas varandas, com as comunidades recém formadas para ajudar quem mais precisa, com as fábricas têxteis que escolhem desistir do seu negócio temporariamente para produzir material hospitalar, pelos artistas que no meio da incerteza difundem os seus concertos, os seus filmes, a sua arte para ajudar a aliviar a solidão de tanta gente. Comovo-me com as águas límpidas de Veneza, com a drástica diminuição da poluição, pelas avenidas vazias onde o silêncio impera e penso como isto tudo vai terminar numa inequívoca crise financeira e económica, um desastre sem precedentes, com tanta gente a precisar de salvação.

Percebo que muitos se insurjam com esta ideia de estado de emergência: a maioria de nós não sabe o que é viver longe dos outros e sem poder exercer todas as liberdades que nos foram concedidas por quem lutou antes de nós. Mas aceito esta perda de direitos temporária porque não imagino outra alternativa para estancar esta sangria. Os números são assustadores e não consigo entender como é que ainda não nos tocou a nós. Tiro a minha temperatura todos os dias e desconfio se tusso ou se me sinto mais cansada. Viver sem saber se se tem um inimigo em casa é brutal e cansativo.

A persiana da cozinha está avariada e agora o dia começa perto das seis e meia da manhã. Eles vêem a luz do dia e exigem que nos levantemos. Acordo várias vezes à noite para os tapar ou porque a minha cabeça continua ocupada pela noite fora. Sentia um aperto no peito que só acalmou depois de decretarem o fecho das escolas. Estou cansada e se calhar ainda nem passou sequer o começo. Estou triste e a fazer um esforço gigante para não me deixar abater. Busco coragem também na família, nos amigos e nos estranhos que partilham online como estão a viver este momento inimaginável. Olho para as nossas fotografias e penso “Ainda há uma semana não saímos de casa porque tínhamos preguiça…”. O grande exercício para mim não é entreter-me ou entreter os miúdos: é pensar que isto não vai durar para sempre, quando os sinais dizem o contrário.

Felizmente temos um pequeno jardim, onde podemos pelo menos apanhar ar e um pouco de Sol. E assim eu posso enganar esta sensação estranguladora de estar presa.

Nós vivemos numa área residencial muito calma. Não noto nenhuma diferença para os dias “normais”. Talvez apenas mais carros estacionados à porta de cada casa ou a ausência da agitação das manhãs de escola, quando o miúdos descem a rua de trotinete. De resto, silêncio as usual.

O que fizeram ao meu cérebro, putos?

Eu não sei se sou só eu ou se isto acontece a outras mães e pais mas sinto que estou a emburrecer. É claro que estou a envelhecer e nesse caminho vou perdendo a minha quota parte de neurónios mas o que eu sinto é que essa progressão não está a ser proporcional e está a acontecer muito mais rápido do que gostaria. Tento manter-me informada, tento ver/ler/ouvir coisas novas, tenho acompanhar o passo mas sinto muitas vezes que começo a ficar para trás.

Vem isto a propósito das perguntas que os nossos filhos nos fazem e para as quais eu não tenho uma resposta na ponta da língua. Parece até que me custa a articular as palavras e que não consigo desenvolver o mais básico raciocínio. Há uns anos atrás, e correndo o risco de parecer full of myself, eu sentia que compreendia as coisas e que as conseguia explicar. Não tinha muitas dúvidas existenciais e não estudei matérias muito complicadas mas sentia que tinha controlo sobre o meu próprio conhecimento. Agora, pedem-me para explicar uma coisa, qualquer coisa, e eu sinto-me a pessoa menos educada e articulada do mundo. Alguns exemplos dos exames que tenho sofrido:

Vicente: Mãe, qual é a nossa missão na Terra? Nós vivemos e isso mas o que viemos fazer?

Eu: …

*****

Amália: Porque é que os elefantes existem?

Eu: Erm…

Amália: Porque é que os nossos olhos estão a ver?

Eu: (ainda a recuperar da primeira pergunta) Erm…

Amália: Porque é que eu sou real?

*****

Fico com dúvidas sobre se isto é mesmo normal ou se calhar o resultado de mais de oito anos de privação do sono, por exemplo. Os meus níveis de cansaço às vezes eram tão altos que, ao fim do dia, não me lembrava como tinha chegado até ali. Por outro lado, não creio que seja um problema generalizado, já que no trabalho tenho continuado a aprender coisas durantes todos estes anos e a pô-las em prática facilmente. Se calhar, está é a ser difícil desmontar coisas que eu pensava saber ou tinha com garantidas, coisas que nunca tinha vocalizado mas em que tinha reflectido. De qualquer maneira, acho que nunca discuti estas questões durante a minha vida e essa é sem dúvida uma falha minha. Mas esta é a maravilha de educar filhos a dois: quando só me sai uma alarvidade qualquer ou quando me faltam as palavras para responder às questôes deles, o pai intervém e ajuda-me com as suas explicações curtas e simples. Se bem que às vezes não há explicação possível…

Vicente: Mãe, como é que os dinossauros faziam chichi?

Já podemos entrar em pânico?

Vamos lá a ver: está a ser um bocado difícil não entrar em pânico com o estado do mundo neste momento. Há refugiados às portas da Europa a serem usados como arma de arremesso pela Turquia, o aquecimento global continua a dar provas da sua existência (e do seu avanço), Trump continua no poder e com muitas hipóteses de voltar a ganhar em Novembro, o Reino Unido saiu finalmente da União Europeia, a Índia está a ferro e fogo. Mas, como se isto não fosse suficiente, ainda temos de levar com o coronavírus.

Sinceramente, no início vi/ouvi/li as notícias mas não fiquei assustada ou preocupada. Afinal, a China é bem longe daqui. Mas, com o passar do tempo, o meu terror foi crescendo à medida que o vírus chegava mais perto de nós. Não ajuda o excesso de informação e muitas vezes de desinformação em que vivemos. Não ajuda a maneira como muitas pessoas encararam a situação, esvaziando supermercados e esgotando máscaras (que nem sequer deviam ser usadas por quem não está doente, segundo o ECDC).

E também não ajuda que o vírus tenha chegado ao Luxemburgo na noite de Sábado e a Portugal esta manhã. Tenho consumido mais actualizações noticiosas do que seria recomendado, tenho procurado conforto nos organismos oficiais que emitem pareceres todos os dias e que o fazem de maneira totalmente objectiva e imparcial, especialmente aqueles que demonstram com números e factos que, apesar desta ser quase uma pandemia, a taxa de mortalidade permanece baixa. Tenho tentando não sucumbir ao medo irracional de poder estar/ter estado em contacto com alguém contaminado sem sequer dar conta e transmitir isso aos meus filhos ou que a minha família possa ser contaminada também em Portugal. Passei uma semana em casa doente (há duas semanas) e não pude evitar perguntar-me se não estaria também eu infectada, já que os sintomas eram os mesmos. Na altura, a minha médica apenas me receitou descanso e os ocasionais anti-piréticos, já que que não tinha viajado para uma zona afectada pelo surto. Aliás, nem sequer houve nenhuma questão sobre isto durante a consulta. Mas nada impede que eu não pense nisto, especialmente assim que se apagam as luzes e é hora de dormir.

E, quando penso mesmo a sério nisto, acho que o que me assusta mais não é a doença em si mas a ideia de que este vai ser o nosso novo normal, com epidemias/pandemias a surgirem todos os anos ou todas as estações e nós sem sabermos como lidar com elas, nós sem vacinas nem medicamentos que possam ajudar, nós de prateleiras vazias e atrás de cortinas dias a fio. Se eu rezasse, rezava agora pela chegada da Primavera (que, dizem, pode atenuar a progressão do vírus), rezava pelas pessoas que vivem há semanas em isolamento, rezava pelas cidades vazias e pelos hospitais a cuidar incessantemente dos doentes e a tentar evitar a propagação da doença. Mas como não rezo, resta-me a minha crença inabalável na ciência e a minha resistência auto-imposta a ataques de pânico. Cruzo os dedos, porque não sei quanto mais tempo consigo resistir.

Amalinha, cinco anos a dar-nos cabo da cabeça!

Eu devia ter adivinhado pela maneira intempestiva como chegou ao mundo. Amália chegou numa manhã gelada de 2015, sem dar oportunidade à epidural e sem esperar para nascer! E hoje completa cinco anos de vida, os mais intensos da minha vida!

Ainda tem muitos problemas em sentar-se quieta na escola e a professora às vezes não parece saber o que fazer com ela. É aplicada nas coisas que faz, desenha bem para a idade que tem e sempre coisas de menina (coelhos, gatos, unicórnios, os membros da família). Mas também é maria rapaz e gosta de jogar à bola com os irmãos, trepa móveis e muros como se não soubesse o que é o medo, não é esquisita a escolher o desenhos animados que quer ver. Anda muito orgulhosa das primeiras letras que sabe desenhar e pede muitas vezes para copiar coisas. Consegue identificar os nossos nomes e o nomes dos amigos só de olhar para as letras mas muitas vezes é ansiosa por pensar que não vai saber reproduzir a mesma sequência de letras.

Não me parece que tenha muitos amigos. Brinca muito sozinha e consegue inventar a suas brincadeiras sem interferência de ninguém. Dá-se melhor com adultos do que com crianças mas parece, mesmo assim, ser relativamente popular nos círculos sociais (escola, tempos livres). Come cada vez menos e pior. Quando era pequenina, comia tudo o que lhe púnhamos à frente e sem reclamar ou afastar algum alimento do prato. Hoje em dia, não gosta de quase nada e precisamos muitas vezes de negociar/chantagiá-la para conseguirmos que coma o mínimo possível.

Não a conseguimos obrigar a fazer nada. Mesmo com ameaças de castigo, ela insiste e leva a sua avante até não poder mais. A única coisa que resulta é falar, falar muito e explicar as coisas e os porquês para que ela possa mudar de ideias. Claro que um par de gritos vai muito longe mas preferíamos que isso não tivesse de acontecer. Birras? Ainda são muitas e intensas, porque esta miúda não veio ao mundo para fazer as coisas de mansinho. Mas já as vamos controlando mais e já são um pouco menos longas do que, por exemplo, há um ano atrás. É a heroína e o modelo do irmão mais novo, que a segue e imita por todo o lado e detesta isso. Mas brincam muitos os dois: afinal, a diferença de idades é menor do que entre ela e o Vicente. A pior coisa que lhe pode acontecer é o Vicente não querer brincar com ela, o que - adivinhem lá - acontece muito frequentemente…

Ela mudou a minha vida por completo. Todos eles mudaram, à sua maneira e a seu tempo, mas ela fê-lo de maneira radical e impossível de ignorar. Ela estica a minha paciência a sítios que pensava não existirem, ela faz-me perder as estribeiras com as suas exigências irracionais mas ela também me mostrou o que é amar alguém tão intenso e over the top de maneira incondicional. Ela é, entre os nossos filhos, a que mais me preocupa porque a vida não é fácil para quem não consegue controlar bem as suas emoções, para quem é menos sociável do que é esperado, para quem vive tudo como se fosse a última vez. Mas ela descansa-me também com o coração grande e cheio de empatia, com a sua curiosidade por tudo, com o sentido de humor bem particular. Amália, há cinco anos a centrifugar a minha calma e a ensinar-me que não há nada que uma noite de sono não possa aliviar!

Vida normal

É o que me afasta da escrita.

É acordar às cinco e meia três dias por semana porque é a única altura do dia que me convém para fazer exercício mas fazê-lo em pés de lã para não acordar algum prematuramente. É depois despertá-los ainda a noite é escura e aproveitar que não costumam reclamar mas só até chegarem à cozinha. Depois, é enfrentar as primeiras birras da manhã porque queriam um prato de outra cor ou queriam comer o resto da pizza do jantar. É preparar as lancheiras sem que eles vejam o que escolho porque não vão querer essa coisa precisamente hoje e porque, se pudessem, só iam levar chocolate. É espera que os dois mais velhos se vistam sozinhos, não sem antes haver aquelas discussões conhecidas na nossa casa: ele porque só quer usar calças de fato de treino, ela porque não quer usar calças quando lá foram fazem -5º. É esperar que o pequenino não se tenha esquecido que está a usar cuecas e tenha feito cocó assim mesmo. É pegar-lhe para vestir, lavar a cara e pentear, ao mesmo tempo que mantenho o olho nela e confirmo que está quase pronta. É vestir-me em dois minutos sem que alguém bata em alguém ou sem que comece uma gritaria desgraçada. É deixar que o mais velho saia para a escola, enfiar os casacos nos mais pequenos, assegurando-me que as janelas estão abertas para arejar a casa. É tentar meter o mais novo no carrinho, enquanto lhe abro a trotinete a ela sem que eles acordem metade da vizinhança com os seus gritos. É deixá-la na escola sem chorar (depois de meses a fio a não querer entrar sem mim…) e ao pequeno na creche, sempre bem disposto.

Respiro fundo duas ou três vezes. É tempo de pegar no carro para ir para o trabalho. É também rezar para o trânsito de hoje esteja melhor do que o de ontem e não seja preciso fazer um caminho completamente disparatado para avançar apenas alguns metros. É fazer um esforço para não soltar asneira atrás de asneira com toda a falta de civismo que encontro nestas estradas e esperar que alguém me deixe entrar no cruzamento (em vez de avançar ainda mais rápido para não deixar ninguém entrar…).É ter muitas vezes tempo para apreciar o nascer do dia entre gruas, entulho e estradas acabadas de estrear.

Respiro fundo mais uma vez. Agora é entrar no elevador e passar mentalmente em revista o que vai ser o dia de hoje. É saber que, com novos chefes, vêm novas formas de liderar e é fazer e refazer o trabalho até que alguém esteja plenamente satisfeito. É aceitar que há entusiasmo que se evapora misteriosamente no ar, há muitas promessas que (eu sei que) não se podem nunca cumprir, há pessoas a falar demasiado alto a manhã inteira, há trabalho e mais trabalho a nascer e os recursos a continuar os mesmos. E há aquela luta interior entre o conforto de um trabalho e imaginar o que podia ainda ser. E a meio há aquele balão de recuperação, uma hora de almoço passada em casa, aquecendo os restos do jantar de ontem em total silêncio para me lembrar a que soa a nossa casa quando não está ninguém.

E antes de poder respirar um pouco mais, há que apanhá-los dos tempos livres e da creche, cansados, excitados e quase sempre sujos numa competição desenfreada para ver quem consegue dizer mais coisas antes mesmo de chegarmos a casa. Depois é conseguir metê-los todos na banheira à vez e tê-los de pijama assim que possível. É mediar conflitos até ser hora de jantar e rezar para que não tenha que ser eu a cozinhar também. É gritar que cambalhotas em pleno ar é capaz de não ser boa ideia quando começam no sofá, é dividir a atenção e o colo pelos três, cada um suplicando por um pedaço de atenção à sua maneira mas quase sempre choramingando faz-me cócegas, mãe. É fazer figas para o jantar se assemelhar a uma refeição de pessoas normais, de crianças normais, sem amuos e sem não gosto de legumes/queria massa em vez de arroz/quero comer carne/esta comida é blearc. Depois, conseguir que lavem os dentes em tempo recorde para poderem escolher o livro que vão ler antes e se deitar e esperar que fiquem mesmo na cama nos instantes finais. Depois é dar água e colocar creme nos lábios, é pôr uma fralda ao pequeno, é beijinho e abraço a cada um e mãe, gosto de ti/mãe, vamos à feira?/mãe, ele está a chamar-me nomes antes de apagar a luz. A breve sensação de pausa é rapidamente interrompida pelos gritos de um ou pelo despertar de pleno pesadelo de outros, minutos depois de adormecer.

E finalmente posso respirar fundo outra vez. Ainda há um restinho de tempo para tentar ser uma pessoa, para partilhar trivialidades e decidir coisas com o meu marido, para um pouco de entretenimento simples mas também não exageremos, para fazer um pouco de malha que a camisola não se tricota sozinha, para me lembrar de toda a miséria que está a acontecer ao mesmo tempo no mundo e para ler umas páginas do livro que pousei na minha mesa de cabeceira. E depois, bastam-me umas linhas e já nem é respirar fundo, é o sono que v…

Augustinho, três anos de boa vida (e de rabos!)

O nosso Augusto celebra o seu terceiro aniversário! Ai mãe, como pode o tempo ser assim tão cruel? Parece que foi ainda hoje que mo passaram para lhe dar um beijinho e mo levaram a correr numa incubadora… Sinto nostalgia pelo parto em si, não pela semana que lhe seguiu.

O mais novo deixa hoje de ser um bebé, a julgar pelo que se lê por aí. Custa-me pensar que está a perder todas as características e atitudes de bebé mas não sou grande fã desse estágio de desenvolvimento e portanto até estou um bocadinho aliviada. Mas, ao mesmo tempo, sinto uma lagriminha a formar com a ideia de que não vou mais ter um bebé meu. E não, pegar e beijar os bebés dos outros não é a mesma coisa.

O Augusto foi um bebé relativamente calmo e tranquilo, o único dos três que adormecia sozinho mas o terceiro a acordar várias vezes durante a noite. Este pequeno detalhe ia levando-me à loucura: só começou a dormir toda a noite no início do ano passado, o que me fazia somar a módica quantia de uns oito anos de sono esfrangalhado. Ter bebés é muito lindo e tudo mas viver com privação do sono é a maior tortura que alguém já inventou.

Ontem recebemos no correio o convite da nossa comuna para inscrevê-lo na educação precoce em Setembro e caiu-me a ficha: adeus creche, adeus bebé; olá escola pública, olá rotina e disciplina! A escola tem feito maravilhas pelos nossos filhos e eu só posso ser uma defensora entusiástica da escola pública luxemburguesa. Tem os seus defeitos, como todas as outras, mas tem ajudado a integrar bem os nossos filhos, a ensinar-lhes duas e três línguas enquanto crescem, a estimularem o gosto pela natureza e a aprender no geral. A Amália teve, até agora, os mesmos professores do Vicente e esperamos que o Augusto possa também ter os mesmos: a ligação familar está lá, já conhecemos bem os métodos de trabalho e o que esperar, torna a coisa mais fácil.

E o senhor Augusto? Aos três anos de vida, é uma criança cheia de energia. É o mais bem disposto dos três, continua a estar maioriariamente de bem com a vida mas também se deita no chão a fazer as suas birras. No entanto, esses momentos não duram muito e conseguimos trazê-lo de volta à realidade com alguma facilidade. Ri-se de todas as parvoíces mas especialmente de coisas que metam cocó, chichi, rabo e pilinha! Canta muitas canções e a algumas muda-lhes as letras para uma palavra apenas: rabo!

Na creche, tem dias em que é um pequeno furacão que deixa um rasto de destruição por onde passa e em que esgota a paciência e as forças das educadoras. E tem outros em que é um borreguinho, ouvindo e respeitando colegas e educadoras, dormindo a sesta como se quer, dando de comer aos bebés e fazendo tudo o que se espera dele.

Fica maluco quando os irmãos chegam a casa: normalmente fica à porta para os abraçar, enquanto dá gritinhos de alegria. Mas o seu role model é a irmã: imita-a em tudo, os mesmos gestos, as mesmas frases, os mesmos ódios de estimação (”Não gosto de legumes!”), as mesmas brincadeiras. Segue-a para todo o lado e, apesar de brincar também com o Vicente, normalmente só tem olhos para ela.

Será sempre o pequenino da casa, cheio de vida e alegria, procurando o afecto onde quer que vá e devolvendo-o sem limites e sem pedir nada em troca. Há três anos atrás, demorei oito horas para poder ver o meu filho. Sem voz e com aquele vazio de quem dá a luz mas não tem o seu bebé junto de si, caminhei tão depressa quanto pude pelos corredores vazios do hospital e toquei à campainha da neonatologia. E depois, ainda um pouco insegura e confrontada com uma realidade que não esperava, enfiei as mãos pelas janelinhas da incubadora e ali, bem quentinho, estava o meu terceiro e último filho, Augusto, o Grande.


Nova Iorque em Outubro

Ainda antes deste blog renascer, fui a Nova Iorque pela segunda vez. Em 2014, tínhamos lá estado durantes uns três dias mas dormíamos em New Jersey e por isso todos os dias cruzávamos o rio Hudson pelo túnel Lincoln num daqueles autocarros que vai cheio de pessoas que vivem nos subúrbios mas trabalham na cidade. Dest vez, e porque viajava com a minha irmã (em vez de com o meu marido), decidimos ficar mesmo no centro de Manhattan para evitar estas deslocações e para estar mesmo perto de tudo.

Mesmo sendo a minha segunda vez, foi uma viagem incrível. Sentia que conhecia já bastante bem a cidade e lembrava-me ainda dos detalhes da primeira vez. É evidente que em quase seis anos a cidade mudou imenso mas foi relativamente fácil a nossa orientação. É curioso que hoje em dia, quase três meses depois, ainda tenho memórias muito vívidas sobre a viagem e ainda me lembro frequentemente de tudo o que fizemos.

Fizemos muitas coisas novas mas eu também repeti algumas visitas: visitámos Coney Island, onde comemos um desconsolo de crab cake e onde quase fizemos chichi nas cuecas nos carroseis do parque de diversões. Estava um dia incrível, quente e sem vento e, mesmo sendo um dia de semana, o passadiço à beira mar estava cheio de gente a praticar desporto ou só a aproveitar o dia que parecia de Verão; passeámos em Brooklyn meio sem destino e acabámos a comprar discos de vinil na Rough Trade e a comer uns tacos bem bons; andámos setenta quilómetros em seis dias e isso notou-se bem nos nossos pés mas também em músculos que nem sabíamos que tínhamos.

Vimos uma peça na Broadway (The Book of Mormons) e rimos muito, depois de apanhar a maior chuvada da vida a caminho do teatro; subimos aos obrigatórios Empire State Building e Top of the Rock, regalámos os olhos no Met (o Moma estava fechado para remodelações); visitámos livrarias, comemos ramen, atravessámos a ponte de Brooklyn a pé e depois comemos um gelado e eu tricotei com Nova Iorque como pano de fundo. À parte do primeiro glorioso dia, fez bastante frio e houve zonas em que o vento era quase impossível de suportar mas quem quer ver coisas sujeita-se a muita coisa. Nova Iorque é apaixonante mas ao mesmo tempo deprimente: a quantidade de sem abrigos, a distinta sensação que muita gente trabalha quase só para aquecer, muita gente mais velha que já devia estar reformada ainda a trabalhar, a sujidade das ruas, os sítios onde era quase impossível meter pé.

Pensei que fosse daquelas cidades que vemos uma vez e está visto mas descobri, com esta segunda visita, que é mais daquelas cidades onde vale muito a pena voltar e simplesmente deixarmo-nos levar pela vida quotidiana. Caminhar muito para todo o lado e evitar o sistema de transportes muitas vezes a abarrotar, ouvir tantas línguas diferentes à nossa volta, sentirmo-nos verdadeiramente no centro do mundo, onde tudo acontece e, principalmente, onde tudo é possível. Mas naquela típica análise que se faz depois de conhecer uma cidade nova: não, não gostava de viver lá. Apenas voltar uma e outra vez, com a certeza de que posso depois regressar ao conforto e falta de agitação deste pedaço de velho mundo.

Desejos para 2020

Decidi escrever os meus desejos para 2020 e não as minhas resoluções.

Estava reticente, confesso. Por um lado, resoluções soa-me demasiado a obrigações e eu não quero chegar ao final do ano cheia de culpa se alguma das minhas resoluções falhar. Mas por outro, colocar estes desejos por escrito ajuda-me a organizá-los na minha cabeça. E o facto de os enviar assim, para o Mundo, faz com que me sinta mais responsável por vê-los efectivamente realizados. Primeiro, escrevi-os no meu caderninho de bolso, que se tem revelado numa preciosa ajuda para pôr as ideias em ordem.

Mudar de emprego/trabalho/posição

Em questões de trabalho, mais ainda do que noutras áreas, o meu lema é Quem está mal, muda-se. eu não estou propriamente mal: trabalho com pessoas de quem gosto para uma empresa que me deixa gerir o meu horário de maneira mais ou menos flexível fazendo coisas de que descobri gostar. Mas, depois de trabalhar quase oito anos no mesmo sítio, sinto-me a estagnar um pouco e também que não há muito mais espaço para a minha progressão.

Talvez a pior coisa que esta sensação me traz é a ideia de que estou a ser ingrata para uma empresa que me deu tanto e que até foi acreditando em mim ao longo dos anos. É por isso que não digo apenas Mudar de emprego: eu equaciono ficar aqui, se outros desafios se apresentarem ou se me considerarem para outras posições. Ficar simplesmente como estou é que não é a solução. Em teoria, só dependo de mim para mudar e decidi que este ano a coisa deve dar-se.

Brincar mais com os meus filhos

Normalmente, nas relações pais/filhos, parece existir sempre o progenitor que brinca e o progenitor que cuida. Adivinhem qual sou eu… Não consigo voltar a brincar, não tenho paciência para me sentar entre os três a montar um set de Lego, não sou mãe para me deitar no chão e deixar que eles me sufoquem numa brincadeira qualquer. A isto devo somar que as nossas circunstâncias familiares (uma família com três filhos, a viver num país estrangeiro, em que os dois pais trabalham e sem ajuda de família ou amigos) fazem com que me sinta muitas vezes mais cansada do que gostaria.

Mas não vivo bem com isto. Vejo como o pai às vezes se dedica exclusivamente às coisas deles e sorrio, apreciando silenciosamente a sua paciência. E às vezes, para brincar, não é preciso muito: às vezes chega estar sentada no sofá, com eles deitados no colo, alternando as cócegas nas costas a cada um. E isto deve ajudar a reduzir o nível de stress com que chego a casa muitos dias.

Encontrar algum trabalho voluntário

Este desejo deve ser o mais difícil de concretizar, embora seja de longe o mais urgente. É impossível ficar indiferente ao que se passa no mundo nos dias que correm: os incêndios na Austrália, os números assustadores de violência doméstica sobre mulheres um pouco por todo o mundo, os retrocessos civilizacionais como a penalização do aborto ou a criminalização da homossexualidade, o assustador re-aparecimento da extrema-direita por toda a Europa… Enfim, podia passar aqui um bom bocado a enumerar tudo o que me deixa ansiosa e pensativa.

Falo pouco sobre como estas coisas me fazem sentir em todas a minhas redes sociais com algum medo de não saber articular o que penso e porque acho que é mais importante agir do que opinar (embora a partilha seja uma arma indispensável para lutar por um mundo melhor). Mas penso muito nisto tudo, choro com as notícias, tenho pesadelos que são apenas uma repetição da realidade e tudo isto me deixa muito ansiosa em relação ao futuro dos nossos filhos. Eu acho que consigo aguentar tanta miséria, amargura, destruição. Mas e eles, conseguirão?

Tenho muito pouco tempo livre, é um facto. Mas tenho esperança de poder arranjar maneira de me voluntariar para ajudar alguma destas causas, mesmo que seja online (traduzindo ou revendo textos, como já fiz antes).

Sair mais de casa

Tenho a incómoda sensação de que quando éramos apenas pais do Vicente saímos muito mais de casa. E é normal que assim fosse: ele era só um, a logísitica era mínima e tomar conta dele era bastante fazível - afinal, ele era só um e nós éramos dois…

Mas com a chegada dos outros filhos, as coisas complicaram-se. Todas as manhãs, é difícil ter os três vestidos rapidamente, por exemplo. E às vezes falta-nos a vontade de os levar a qualquer sítio onde possam incomodar pessoas com as (mais que certas) birras e discussões. Entendo que tudo isto é normal para três crianças com muita coisa por aprender mas muitas vezes é desencorajador. Se somarmos a isto a sentimento geral entre nós no ano que passou (as questões de saúde, as pessoas que nos foram deixando), não é difícil perceber que muitas vezes ficar em casa era a solução mais prática e mais desejada.

Mas não este ano. Este ano, quero sair mais com eles (sempre que o tempo e a meteorologia o permitirem), nem que seja até ao parque ou à floresta que temos quase à porta de casa. Eles precisam do ar puro e das energias dispensadas nas correrias e brincadeiras, nós precisamos de respirar e deixá-los ser crianças sem medo de julgamentos ou falhanços.

Irritar-me menos

Esta dava pano para mangas. Odeio dizê-lo mas tudo me irrita: a colega que passa o dia inteiro a cantar para toda a gente ouvir, os condutores que não deixam outros condutores entrar numa faixa, as pessoas que param o carrinho de compras no meio do corredor, os condutores que estacionam sem pensar nos outros, os pais dos colegas dos nossos filhos que às vezes fingem que não nos conhecem… enfim, vocês percebem. Muitas vezes, o stress e a falta de tempo verdadeiramente para mim faz com que me irrite com os miúdos pelas coisas mais parvas e, necessariamente, arrepender-me no segundo a seguir.

Não sei como vou conseguir pôr este desejo em prática mas vai ter de acontecer. Posso voltar a tentar meditar, fazer mais exercício, arranjar uma estratégia mental para não me deixar afectar pelos chicos espertos desta vida - alguma coisa há-de funcionar. Ou qualquer dia caio para o lado com os nervos.

Aprender a tricotar (cores e torcidos) e melhorar os meus acabamentos

Facto: preciso de aprender a organizar (ainda) melhor o meu tempo. Há muitas coisas que quero fazer nesta vida, muitas séries para ver, muitos livros à espera na mesa de cabeceira, muitas camisolas por tricotar. Mas, acima de tudo, há uma janela gigante para aprender muitas coisas novas, graças a uma coisinha chamada internet. Quase tudo o que aprendi sobre tricot até agora, aprendi na internet, procurando recursos online ou mesmo em papel, admirando o trabalho dos outros e sonhando com o dia em que chegarei aos calcanhares de tantas estrelas que fui conhecendo.

Por isso, este ano preciso reduzir o meu consumo irreflectido e oco de redes sociais e dedicar mais tempo à actividade que mais me relaxa e me realiza neste momento.

Escrever mais

Aqui e não só.

Ler mais

Diminuí o meu desafio Goodreads este ano: passei de achar que ia ler 15 livros no ano passado para achar que vou ler 12 em 2020. Está muito longe do que já li em tempos mas, considerando todos os pontos anteriores, acho que seria já uma vitória.

E vocês? Fazem resoluções quando o ano muda ou não acreditam assim muito em novos começos?

2019, já vais tarde!

Ufa, que ano.

2019 foi demasiado longo, demasiado negro, demasiado tudo. É claro que tivemos momentos de felicidade e de tranquilidade mas tudo me parece uma memória distante e ensombrada por todas as coisas tristes que nos aconteceram nestes doze meses. Mesmo nos momentos em que nos permitimos descontrair ou aproveitar algum tempo livre, uma espécie de nevoeiro pairava sobre as nossas cabeças, como que para não nos esquecermos de que não controlamos quase nada neste mundo.

Foi um ano sofrido, com alguns problemas de saúde lá em casa. O nosso chefe de família passou um mau bocado e ainda está a tentar recuperar de tantos meses com dores, cansaço e nenhuma resposta conclusiva. Para mim, foi duplamente difícil: por um lado, a dor de o ver assim sem poder ajudá-o ou aliviá-lo; por outro, ter que andar com as coisas práticas para a frente e ter que tentar não deixar o humor bater mesmo no fundo. Muitos dias fui buscar forças sabe-se lá onde. Aos miúdos, se calhar, mas até eles sofreram as consequências de tanto stress e de tanto mau estar.

Perdemos mais gente do que devia ser permitido. Perdemos o meu sogro, depois de uma luta sofrida contra uma doença repentina e incompreensível. Foram cinco meses de angústia, de um sentimento debilitante de impotência, de muita tristeza. Nunca me irei esquecer do momento em que percebemos, finalmente, que o seu estado era irreversível: estávamos a caminhar no Vondel Park, em Amesterdão, fazia muito frio e os miúdos começavam a fazer birra porque não queriam andar. E nós, os adultos, de repente a termos de lidar com a ideia de que as coisas não voltariam mais a serem o que eram. Tanta falta que nos vai fazer! Sentiremos saudades das latas de pêssego em calda no Verão para os miúdos, das histórias dos pombos, das minis mesmo no pico do calor, da sua boa disposição e paciência para os netos.

Perdi uma tia-avó, a estrela dos meus Natais passados, aquela alegria e riso contagiante quando éramos tantos à mesa. Uma mulher de trabalho, para quem a vida foi tudo menos fácil e muito menos agradável, uma muher cheia de força que foi empurrando os seus filhos para uma vida sempre digna e estável.

Perdemos amigos dos meus pais, pessoas mais novas do que eles e que desapareceram inesperadamente ou também depois de sofrerem numa cama de hospital. Amigos ainda com tanto para viver: sardinhadas e outras jantaradas, passeios e excursões, tardes passadas na esplanada a falar de tudo. Ficamos todos mais pobres, especialmente quando as pessoas ainda são novas.

No meio de tanta angústia, ainda tivemos momentos bons, é preciso dizer. Os meus momentos preferidos com os miúdos envolveram sempre água: as vezes que os levámos à piscina e os poucos dias que passámos na Costa Vicentina. Foram sempre dias de menos birras, de mais liberdade e espaço pa explorar, de algum cansaço no final do dia. A Amália começou finalmente a expressar-se em Luxemburguês (a que ela chama sempre Inglês…), o Augusto deixou de ser aquele bebé fofinho para passar a ser um terrorista que não sai da creche sem beijar repenicadamente cada educadora, o Vicente tornou-se naquele miúdo que chora quando não o deixamos ajudar nas tarefas domésticas. Eles sentiram o nosso stress e ressentiram-se, mesmo quando tentámos mantê-los afastados da tristeza.

Mas os melhores momentos continuaram a ser com eles, especialmente quando acordavam no fim de semana a uma hora decente e depois vinham a correr para a nossa cama para depois abrirmos as persianas. Só não era divertido quando queriam fazer isto às 6 da manhã. Num Domingo…

Portanto, é compreensível que queiramos ver este ano pelas costas e abrir um ano novinho. Queremos ter a oportunidade de melhorar enquanto pessoas, queremos ter mais paciência, levá-los a fazer coisas divertidas e a visitar a família. E nós, adultos, continuamos a precisar de (pelo menos) uma semana de férias a dois para fazer o que nos apetece. O que, a julgar pelos últimos anos, não só é possível, como vai melhorando de ano para ano.

A quem me lê (há muito tempo ou desde a mais tenra reencarnação do blog aqui), desejo um 2020 cheio de saúde, principalmente. Mas também cheio de liberdade, de planos entusiasmantes, de coragem, de paixões assolapadas, de grandes mudanças e pequenos passos, um novo ano cheio de vida! Eu lutarei pelo mesmo :)

Ser portuguesa no Luxemburgo

Esta conversa aconteceu ontem, num atelier duma costureira Luxemburguesa.

(eu a soletrar-lhe o meu nome para ela escrever no recibo)

Ela: Ah, é italiana?

Eu: Não, sou portuguesa.

Ela: Humm, é que não parece…

Eu: Porquê? Por causa dos meus cabelos brancos?

Ela: Sim. Mas também pela maneira como fala.

Eu: Ah sim? Falo como?

Ela: Como uma francesa…

A minha opinião sobre a aceitação e integração dos estrangeiros no Luxemburgo é bastante cautelosa. Por um lado, é inegável que a sociedade luxemburguesa acolhe e tenta integrar a quantidade impensável de estrangeiros que vivem aqui ou que chegam aqui todos os anos, Basta pensar que, em pouco mais de 600 mil habitantes, 290 mil são estrangeiros. E destes, quase cem mil são portugueses (fonte).

O país tem três línguas oficiais (o Francês, o Alemão e o Luxemburguês) mas em alguns serviços públicos há também suporte e documentação em Português e o Inglês também é aceite em quase todo o lado. Só na cidade do Luxemburgo convivem cerca de 160 nacionalidade diferentes - por si só, este é um indicador do forte multiculturalismo que se vive por aqui. Há imensas manifestações culturais (e até religiosas) de vários cantos do mundo, como por exemplo a peregrinação a Wiltz (no Norte do país), onde se encontra um santuário de Nossa Senhora de Fátima.

Devo dizer, no entanto, que a minha experiência com alguns cidadãos luxemburgueses vai no sentido totalmente inverso desta aparente integração. Bastou-me muitas vezes dizer que sou portuguesa para o tom de uma conversa passar de amigável para seco. E não ajuda, o facto de não saber falar Luxemburguês: é totalmente visível que as pessoas que falam a língua têm um tratamento diferente, nem que seja pelo maior à-vontade durante uma conversa no supermercado, num gabinete médico ou numa reunião escolar. Tento não julgar os luxemburgueses: afinal, não deve ser agradável este sentimento que a sua língua, cultura e tradições podem estar condenadas a desaparecer neste pequeno mais intenso melting pot. Não é à toa que o lema dos luxemburgueses é Mir wëlle bleiwe wat mir sinn, que se traduz por qualquer coisa como Queremos ser como sempre fomos. É um lema muito bonito, de conservação do património linguístico e cultural e que demonstra o esforço (muitas vezes inglório) para não sucumbir às influências daqueles que vão construindo e modificando o país. Também se pode argumentar que é um símbolo de alguma falta de horizontes mas eu cá prefiro a primeira versão.

Também não é à toa que a animosidade dos luxemburgueses para com os portugueses possa ser mais exacerbada. Os portugueses representam neste momento 16% da população total do Luxemburgo e há quem diga 25% da população activa. Há pequenas vilas onde se fala mais Português do que outra língua qualquer, há cafés, restaurantes e mercearias especializados em produtos portugueses, há clubes de futebol a replicar os clubes portugueses (como este), o português é a língua mais falada onde quer que exista alguma construção. Mas é bom também não esquecer que há décadas que os portugueses ajudam este país a crescer, muitas vezes à custa das suas próprias famílias ou de uma vida verdadeiramente digna. Há décadas que nascem portugueses aqui que, à força dos anos que vão passando, se vão naturalizando e assimilando cada vez mais a cultura luxemburguesa, guardando apenas o seu amor a Portugal mas aquelas três semanas de férias. A flexibilidade e a capacidade de adaptação dos portugueses faz com que estejamos espalhados por todo o mundo e por isso não é surpreendente que estejamos também implantados aqui,

Estereótipos, como em tantos outros países, há muitos. Simplificando, os portugueses não passam de serventes de pedreiros (eles) e empregadas de limpeza (elas); os franceses tomam conta do comércio e restauração; os italianos são bons é nas mercearias… Os luxemburgueses esquecem-se muitas vezes que há pessoas para todos os cargos e sectores da sociedade de todas as nacionalidades. Mas em Portugal acontece o mesmo com os brasileiros, por exemplo.

Pouco depois de chegar ao Luxemburgo, fui com o Mário inscrever-me no Centro de Segurança Social para obter o número que basicamente prova que tu existes dentro desta sociedade. O funcionário que nos atendeu, mesmo depois de verificar os formulários com a nossa informação, perguntou ao Mário quantas mulheres tinha. Em 2012, de um cidadão europeu para outro cidadão europeu. Enfim, casos como estes são isolados e provam ou a extrema ignorância de uma pessoa ou a sua inclinação para ser apenas maldosa e colocar-nos naquele que ela pensava ser o nosso lugar. Mas o nosso lugar é aqui, num país que aprendemos a amar e a odiar às vezes, num país de que sentimos falta quando estamos fora. E, sinceramente, o nosso lugar é em qualquer parte do mundo onde possamos ser úteis, onde nos sintamos em casa, onde os nossos filhos possam crescer felizes e em segurança. Mas há sete anos que assentámos arraiais aqui e, mesmo que nos torçam o nariz assim que descobrem a nossa nacionalidade, é esta a nossa casa.

Não sou grande espingarda a socializar

Ontem participei num evento para mulheres que trabalham em áreas mais técnicas. Este evento é organizado por uma associação sem fins lucrativos em todo o mundo e tem como objectivo ajudar a atingir a paridade de géneros numa área que é - todos o sabemos - maioriariamente masculina. Alguém desta organização procura perfis de mulheres que encaixem nestes objectivos e convida-as a participar.

Esta não foi a primeira vez que fui convidada mas foi a primeira vez que decidi ir. Pensei que seria interessante sair um bocado da minha zona de conforto, falar com deconhecidos, tentar perceber se o mercado de trabalho mudou significativamente desde a última vez em que activamente procurei emprego, experimentar pôr-me mais out there. Como em muitas outras ocasiões, estive quase a desitir à última da hora porque não suporto a ideia de estar numa situação em que tudo é estranho: o sítio, as pessoas, o objectivo. Mas como estou a tentar ser uma pessoa melhor ou, sobretudo, diferente, aguentei-me e fui.

Não sou pessoa de meter conversa com ninguém e também não sou muito boa a manter toda uma conversa com estranhos mas, enquanto esperávamos pelo início do evento, consegui falar com duas americanas que me contaram muito mais sobre a sua vida do que aquilo que eu queria saber (uma tinha recebido uma factura do arranjo do carro ontem e precisava de um copo de vinho, à outra só faltava uma placa ao pescoço a dizer Eu sou a maior technical writer que alguma vez vais conhecer na vida.). Só eu sei como foi difícil manter o contacto visual e conseguir fazer alguma pergunta no meio de tanto bla bla bla.

No evento, estavam algumas empresas a recrutar para postos mais técnicos. A ordem de trabalhos era comida + bebida (mini sandes de tomate seco e fiambre, bolachinhas com creme de abacate, dois copos de tinto para mim) -> breve apresentação das empresas participantes -> uma espécie de speed interviewing, em que íamos passando pela mesa de cada empresa numa mini-entrevista de 5 minutos. Eu lá fui armada com os meus currículos e os meus cartões de visita e pronta para dar a volta à coisa, que eu na verdade não estou à procura de emprego. Percebi, antes das apresentações, que a maioria das pessoas que ali estava tinha formações mais técnicas e mais adequadas ao evento em si e isso fez com que eu ficasse ainda mais auto-consciente - mas afinal o que vim eu aqui fazer?

Logo na primeira entrevista, o rapaz diz-me que sim senhor mas só estão a contratar pessoas mais séniores. Na segunda, uma das entrevistadoras parecia aborrecida com o que eu estava a dizer, outra olhava constantemente para a porta. Promissor, pensei eu. À terceira, tive um bocadinho mais de sorte e apanhei três raparigas de três nacionalidades diferentes que gostaram que eu falasse muitas línguas. Primeiro (e único) ponto positivo da noite. Quando ia para a quarta entrevista, começaram a entrar outras pessoas e eu resolvi fazer uma pausa para mais uma mini sandes e um mini copo de vinho. Afinal, a pausa não foi pausa e eu resolvi pegar no meu casaco e voltar para casa.

Ainda assim, eu acho que valeu a pena. Fiquei a perceber como funcionam estes eventos, aprendi coisas sobre outras empresas, comi e bebi um bom tinto. Mas também me lembrei como não sou uma pessoa que sabe socializar. Não sei (nem quero, normalmente) meter conversa e depois mantê-la além daqueles segundos iniciais, não quero contar a minha história a estranhos, não quero que eles me contem a deles a não ser que me pareça interessante, não quero ter de abanar a cabeça quando o que me apetece dizer é Tu estás é cheio/a de tretas. Sou uma nódoa socialmente, eu sei. Não parecer descontraída, não sei relaxar, nem falar por falar. Sei só ficar ali a observar, em silêncio, até que alguém nos chama para começarem as actividades. Sei que estas coisas se trabalham mas também que é preciso querer. E eu não estou certa que quero. Não ajuda odiar pessoas no geral (menos os meus leitores, claro! ^^) mas isso fica para um outro post.

Quando nada nos faria prever...

Ontem à noite, num dos mercados de Natal da capital, morreu uma criança com dois anos. Perto de um ringue de patinagem, uma estátua de gelo encomendada para o evento aparentemente derreteu e um bloco de gelo com algumas centenas de quilos caiu em cima da criança. Fim da história.

Não que alguém se dê ao trabalho de me perguntar alguma coisa mas se alguém me perguntasse porque não acredito em Deus, a minha resposta seriam estas histórias. Estes acontecimentos trágicos e absurdos, a rasgarem a normalidade em mil pedaços, sem respeito pela ordem natural das coisas. Aqueles momentos em que o som apenas nos chega abafado e ganhamos a consciência que a nossa vida acabou de mudar, antes mesmo de um segundo ter passado. Aquela dor que às vezes imaginamos (e se ele me tivesse largado a mão e corrido para a estrada? E se o carro não tivesse travado? E se não tivéssemos dado pela falta dela naquele minuto exacto? E se ele se debruçasse demasiado contra a nossa vontade?) mas que não podemos nunca prever nem aceitar, racionalmente, como uma possibilidade.

Tremo, só de pensar. Ninguém merece, ninguém imagina, ninguém antecipa. Os perigos à nossa volta multiplicam-se mas não há como viver sempre a pensar numa desgraça. Espanto-me muitas vezes com a nossa fragilidade e com a constatação de que a morte se esconde onde menos se espera e quando menos se espera. Vivemos primeiro agarrados à esperança de que nunca vamos morrer, depois abraçados à ideia de que existe realmente uma ordem natural e os filhos hão-de ir depois dos pais. Escapamos a guerras, à fome e à doença, vivemos em paz e abundância para um dia, imediatamente antes de lhe calçarmos uns patins ou antes de lhe comprarmos uma salsicha, nos morrer um bebé. Assim, sem mais nem menos.

Lamento o meu último post. Lamento queixar-me assim porque, no final de contas, os meus filhos estão vivos e eu não preciso acordar sem vontade de viver. Lamento não agradecer mais a dádiva que é ralhar-lhes, dar-lhes banho enquanto eles gritam, enfiá-los na cama quando não querem jantar. Lamento não conseguir muitas vezes ver além da espuma dos dias e apreciar a vida que temos. E, para não me moer com remorsos, prometo relativizar mais, perdoar mais, aceitar mais, deixar os ses para depois.

Porque é que ninguém me disse que isto ia ser assim?

Partilho convosco um resumo dos meus finais de dia.

17:30 - apanho o Vicente nos tempos livres. Normalmente, já fez os trabalhos de casa e está a divertir-se. Umas vezes a jogar às cartas, outras a desenhar ou a tentar perceber o xadrez. Os monitores explicam que ele se portou bem e que, no geral, tudo vai como deve ser.

17:35 - apanho a Amália nos tempos livres. Pela cara do monitor, já sei que ela lhe fez a cabeça em água. Ele conta-me, desagradado, como se passou a tarde. Ao que parece, ela não o respeita, faz apenas o que lhe apetece, desarruma sem voltar a arrumar, diz a uma colega que é má. Eu baixo-me à altura dela e demonstro-lhe que não estou contente com o que estou a ouvir e que este comportamento não pode continuar. Ela promete que amanhã vai ser melhor e abraça o monitor na mesma, enquanto se despede dele carinhosamente.

17:45 - apanho o Augusto na creche. As educadoras estão com um aspecto exausto: despenteadas, pálidas e nervosas. Descubro, dia após dia, que o Augusto é um dos grandes responsáveis por isto. Não obedece, foge delas em plena rua, pondo mesmo a sua vida em perigo, deita-se no chão quando não quer andar, parte os brinquedos porque só pensa em atirá-los para o chão, atira a comida de que não gosta para o chão, desafia-as sempre a dizer Não, mostra-lhes a língua. Eu baixo-me à altura dele e demonstro-lhe que não estou contente com o que estou a ouvir e que este comportamento não pode continuar. Ele promete que amanhã vai ser melhor, abraça as educadoras na mesma e não sai da creche sem dar um beijo repenicado a cada uma delas.

Por motivos diversos, é a mim que tem tocado este festival todo. Todos os dias da semana, durante semanas, durante meses. Respiro fundo antes de entrar em cada sítio, antecipando já o que me vão dizer e tentando encontrar justificações para tamanha indisciplina. Àquela hora, eu estou cansada do dia de trabalho mas sei que meu segundo dia está apenas a começar. Procuro conversar com eles para perceber o que os inquietou para se portarem assim. Ela diz que a colega a irritou, ele não se consegue explicar. Eu suspiro no curto caminho até casa, porque sei que a segunda ronda de gritos e disputas ainda está para começar.

Pergunto-me muitas vezes onde é que erro, como mãe. Já uma vez fui (fomos, na verdade) acusados de sermos pouco duros com eles mas a sensação que tenha é exactamente a contrária: há muitos castigos lá em casa e certamente mais gritos do que no mundo da parentalidade ideal. Também me pergunto onde vão as crianças buscar certos comportamentos: claro que sei que eles no copiam e olham para nós à procura de exemplo, mas ninguém vai acreditar que eu lhes mostro a língua quando me dizem qualquer coisa de que não gosto, não é? E também não podem acreditar que eu atiro tudo o que tenho à mão para o chão ou que chamo nomes às pessoas com quem não gosto de trabalhar? Eu sei que cada criança tem a sua própria personalidade, elas são muito mais do que apenas as pessoas que nós criámos e certamente diferentes das pessoas que imaginámos.

Este é o comportamento fora de casa. Agora juntem a isso a maneira como se portam em casa. As disputas constantes por um brinquedo com o qual nem querem brincar, os gritos porque um se atreveu a olhar para o outro, os empurrões e as rasteiras em que resultam tantas das brincadeiras, as birras porque o jantar é massa (ou sopa ou peixe ou carne ou arroz ou…), as claras birras de cansaço, as infinitas vezes em que parece que têm problemas de audição (nunca, mas nunca, fazem alguma coisa à primeira), a roupa que odeiam agora mas de que vão gostar nos próximos cinco minutos, etc etc etc. Podia continuar a enumerar os motivos mais parvos (mas algumas vezes divertidos) para estes miúdos se chatearem e, de arrasto, nos chatearem.

Na próxima vez que me virem e notarem mais cabelos brancos, façam-me um favor: não digam nada e rezem por mim e pela saúde dos meus ouvidos, pela contenção das minhas mãos e pela minha baixa tolerância ao barulho. Ao menos que alguém faça aquilo que peço…