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Fiz quarenta e um anos. Doeu menos que no ano passado, atravessar esta barreira que aos vinte parece longínqua mas, vai-se a ver, e aqui estou eu, quarentona. Queria escrever um ensaio profundo e bonito sobre este tempo mas faltam-me as palavras, a inspiração, o tempo e por isso deixo só notas soltas sobre os últimos tempos e já com quarenta e um anos.

Há duas semanas, tive um acidente de carro. Estava a regressar a casa e um senhor ignorou um sinal de cedência de passagem e enfiou-se directamente na minha porta. Devia circular a 30km por hora mas, como circulava muito acima disso, o meu carro ficou atravessado na estrada, porta completamente escangalhada, vidros e espelhos partidos. Consegui perceber segundos antes que ia ter um acidente e ainda tentei desviar-me mas não fui a tempo. A minha primeira reacção foi de raiva: primeiro, ainda dentro do carro e depois fora do carro, a tentar processar o que tinha acabado de acontecer, Raiva porque não ia poder apanhar os miúdos nos tempos livres (e o Mário estava longe), raiva porque era o carro de serviço e eu não sabia o que fazer, raiva porque ele simplesmente estava distraído a uma velocidade muito acima da permitida. Tive de esperar mais de duas horas para que tudo se resolvesse (a polícia a ajudar-me, uma amiga que ficou com os miúdos, o Mário entretanto a chegar, declaração preenchida, a limpeza da estrada sem demoras, o reboque que nunca mais chegava). No final, depois de tudo resolvido, voltei para casa a pé com todos os meus pertences, mergulhada numa tristeza que não sabia explicar e num desejo agoniante que o dia acabasse finalmente. Não fiquei ferida com gravidade mas preciso de fisioterapia para que os músculos das costas recuperem do choque. Fiquei com um bocadinho de medo de cruzamentos em que tenho a prioridade mas não deixei nunca de conduzir.

No Sábado, chorei com o resultado das eleições norte americanas. Eu sei que muita gente acha que é absurdo acompanhar e mesmo sofrer com eleições que nem sequer são no nosso país mas senti desde 2016 que o que está em jogo é a decência, a luta por uma sociedade mais justa, o mal no seu estado mais puro e disseminado. Ter como presidente um homem que se comporta como uma criança de três anos, sem qualquer experiência ou aptidão política, rodeado de pessoas igualmente inaptas e com planos que em pouco beneficiavam o cidadão comum, que demonstrou desde o primeiro dia que ia fazer implodir as instituições estatais através do seu nepotismo, racismo e negócios em proveito próprio - era tudo mau demais para ser verdade. Não sou cidadã norte-americana mas não posso evitar pensar que ali está um exemplo, uma legitimização de tudo o quanto está mal neste mundo e era vital derrotá-lo inequivocamente. Caíram-me lágrimas de alívio e de alegria, mesmo sabendo que Biden não é um santo e nem sequer vai ser a salvação de um país profundamente dividido nas suas convicções. Mas o primeiro passo era restaurar a presidência com um homem digno, calmo, confiante, conhecedor dos corredores da política, isento tanto quanto possível, sensível às questões sociais, raciais e identitárias, defensor da ciência - o alívio foi, pois, gigante. Mas tudo está longe de estar resolvido e a minha ansiedade voltou assim que percebi que há quem defenda o indefensável e se recuse a aceitar a realidade. Veremos qual vai ser o rasto de destruição que vai deixar.

Percebi há pouco tempo que me tinha enganado com algumas pessoas. Quer dizer, eu sabia que elas eram muito diferentes de mim mas acho que quis sempre ver as partes boas e esquecer as partes más. Chegou o momento de cortar esse mal pela raíz e não admitir toxicidade perto de mim e das pessoas de quem gosto.

O tempo está escuro e chuvoso e há dois dias que o nevoeiro não levanta. É nestes momentos que remexo na minha memória à procura dos dias de Verão e que faço a contagem para o dia mais curto do ano. Aproximamo-nos a passos largos e depois é sempre a somar minutos de luz até ao Verão.

Ultimamente, o mundo tem sido um pouco demais para mim. É como se de repente houvesse tanto mal, tanta miséria e sofrimento, tanta catástrofe e tanto desastre natural que não consigo aguentar. Sinto que o mundo está numa bifurcação entre voltar a um passado de repressão, ausência de liberdade e de direitos e um mundo que tem tudo para ser melhor e mais justo para todos, caso os nossos líderes nos conduzam nesse mesmo sentido e todos nós façamos a nossa parte. Perdoem-me a construção simplista mas sinto que os bons estão a perder terreno e que os maus estão já ali na esquina, à espera do momento certo para tomar conta de tudo. Não está fácil para pessoas como eu, que choram por tudo e por nada.

E o Natal está quase aí e começa a ser cada vez mais evidente que não vamos passá-lo com a nossa família. No estado em que estão as coisas, não vamos a lado nenhum mas não consigo evitar sentir uma pontinha de esperança de que tudo vá melhorar e que esta segunda vaga comece a ficar finalmente sob controlo. Até lá, acho que vou começar a procurar o bacalhau e esperar conseguir couves para a ceia. Valham-nos as novas tecnologias que nos deixam estar com os nossos, mesmo que não lhes possamos tocar ou pedir colo.

Estou farta de pessoas, especialmente em caixas de comentários. Estou farta de negacionistas, que acham que tudo isto não passa de um complot mundial para alguém dominar o mundo e que esse domínio vai chegar através de um chip contido numa vacina. Estou cansada das pessoas que criticam tudo o que o governo decide, como se algum governo tivesse um plano para lidar com uma situação deste género e não estivesse a navegar à vista. Estou cansada dos que querem confinamentos e dos que defendem a Suécia e dos que têm opiniões sobre o uso da máscara. Sinto uma terrível falta de moderação, de racionalidade, de calma e de respeito pelas autoridades, mesmo que elas se contradigam e que cometam erros. Não existia nenhum manual para lidar com pandemias e talvez nunca vá haver um. Mas a única coisa que eu posso fazer é confiar na ciência e na responsabilidade dos outros, ao mesmo tempo que faço a minha parte para não piorar as coisas. Sem gritar, sem espalhar mentiras e teorias da conspiração e entendendo que ainda teremos muitos erros pela frente. Agora, mais pessoas é que não.

E pronto, aos quarenta e um anos tenho a cabeça a ferver. Sempre pendurada por um fio, tentando moderar o consumo de notícias e ignorar a loucura que vai contaminando tudo, concentrado-me no nosso pequeno círculo familiar e nas coisas que me fazem sentir bem. Afinal, como sempre, são eles que importam.