Uma pergunta difícil

Vocês, pessoas que têm filhos, respondam-me lá a uma pergunta: porque é que tiveram filhos?

Vem isto a propósito de uum tweet de uma miúda de vinte anos que li há dias, em que ela dizia que não tem nenhuma vontade de ser mãe e que as pessoas só têm filhos para poderem controlar outra pessoa e para poderem ter alguém que seja igual a elas.

Eu percebo a maioria dos argumentos de quem não quer ter filhos. Sobre-população, alterações climáticas, dificuldades finaceiras, falta de apoio familiar, uma vida confortável e livre e sem amarras. Tudo me faz sentido e posso simpatizar com a maioria dos motivos. Só não consigo perceber a crítica a quem efectivamente escolhe ter filhos.

Há pouco olhei para os nossos filhos e perguntei-me: porque é que decidi ter filhos? E fiquei meio triste porque não consigo encontrar um motivo que me tenha levado a esta decisão. Era a decisão natural, o desfecho esperado numa relação entre duas pessoas adultas que gostam uma da outra. Parece que era isto que esperavam de nós: os pais, a família, o resto da sociedade. É verdade que não fomos pressionados a fazer nada, ter filhos não foi uma obrigação. Mas é um bocado o que esperam de nós, não é?

Nunca me passou pela cabeça que ter filhos significa controlar (quase doentiamente) uma pessoa. É óbvio que crianças pequenas necessitam de um maior cuidado do que adolescentes mas há um caminho que os pais fazem com os filhos em direcção à independência e à liberdade. As crianças têm pouca noção do perigo, demoram a distinguir o bem do mal e o papel dos pais é exactamente ajudar a formar esse conceitos desde pequenos. Não é controlar, não é mandar mas também não é deixar, negligenciar, ignorar. Também nunca me passou pela cabeça ter uma Marisa pequenina: estou demasiado consciente dos meus defeitos para saber que isso seria uma má ideia!

Puxo pela cabeça e não encontro uma razão racional (passe o pleonasmo) para ter filhos: o planeta está a aquecer, há pessoas a mais no mundo, estar vivo é cada vez mais uma questão de sorte dependente do sítio onde nasces, não há ajudas financeiras por aí além, é precisa uma aldeia num mundo em que as pessoas vivem cada vez mais isoladas. A única razão que me ocorre é que nós (pais) sonhamos em deixar uma espécie de herança no mundo, a continuidade dos nossos genes. Será tudo isto apenas um reflexo de instintos primários e milenares? Não sei responder mas de uma coisa tenho certeza: não tive filhos para passar a vida a limpar cocó de rabos :)

Um post sobre bullying (porque tem mesmo de ser)

(É daqueles posts que eu não queria escrever. Arrisco-me a dizer que é daqueles posts que ninguém queria escrever ou ler. Mas, cada dia que passa, sinto que é mais e mais necessário, nem que seja para eu me livrar desta sensação de enfartamento.)

Comecemos pelo princípio: eu também sofri bullying quando andava na escola. O fenómeno não é novo, todos assistimos a situações destas, da primária à universidade, com mais ou menos efeitos nefastos sobre as vitímas. Lembro-me especificamente de dois momentos difíceis para mim: quando um colega me puxou os cabelos até a minha cabeça estar perto do chão e o ritual diário de outro colega que gozava comigo, ambos quando andava no quinto ou no sexto ano. Para resolver a primeira situação, os meus pais telefonaram aos pais do meu colega e queixaram-se , depois de não conseguirmos resultados doutra maneira; para resolver a segunda, e eu sei que isto é simultaneamente incrível e hilariante, a minha avó e a minha tia foram esperar-me à porta da escola, pediram-me que identificasse o meu colega e disseram-lhe das boas em voz bem alta e em frente de toda a gente (enquanto eu provavelmente me encolhia de vergonha). Resultados? Ambos deixaram de me incomodar e cheguei a ficar bastante amiga do segundo.

Estas são apenas duas situações que me marcaram mas eu sei que vivi mais e também sei que outras pessoas sofreram longa e enormemente com a violência, os ataques verbais e físicos, o desprezo, a chacota simplesmente porque não eram iguais aos seus agressores. E, normalmente, é isso que mais me incomoda: o bullying vem de um sítio de profunda falta de auto-estima e de intolerância das coisas mais simples e triviais. A relação mais comum entre agressor e vítima no meu tempo de escola era entre a criança inteligente, estudiosa e esforçada e a criança para quem a escola não significava absolutamente nada.

Nas últimas semanas, um video de bullying violento à porta de um liceu luxemburguês circulou pelas redes sociais e despertou a indignação de estudantes, pais e restante comunidade escolar. Ontem, numa das redes sociais em que tenho conta, circulava também um video semelhante passado em Portugal, em que uma das crianças acaba atropelada por um carro. Escolhi não ver ambos os videos porque não me sinto capaz de lidar com imagens de violência gratuita e sem sentido mas sei que, como estes, existem muitos mais videos e muitas mais agressões que ficam (felizmente) por registar.

E, no entanto, senti que precisava de escrever alguma coisa. Porquê? Porque também temos em casa uma vítima de bullying e custa imaginar que um dia nos vejamos envolvidos numa situação com esta gravidade. O Vicente tem sido agredido verbalmente por alguns colegas desde o início do ano lectivo. Algumas vezes, os colegas usam palavras que nem nós nem ele sabemos o que querem dizer (embora desconfiemos); noutras vezes, insultam-me a mim porque sabem que isso o magoa; noutras vezes, dizem-lhe coisas que também o deixam triste, como “Tu és adoptado” ou “Volta para o lixo de onde vieste”.

Tudo isto dói. A nós mas especialmente a ele, que não consegue compreender os motivos para este tipo de interacções. Muitas vezes, o simples facto de ele estar a ler um livro durante o recreio despoleta estas agressões. Já mudou de lugar na sala para se afastar destes colegas mas é difícil escapar totalmente durante o normal funcionamento da escola.

Já fizemos várias queixas ao professor, que castiga os alunos mas sem resultados. E agora estamos na fase seguinte, em que uma assistente social está envolvida para fazer uma espécie de mediação e para tentar resolver as coisas com os pais das outras crianças. Descobrimos, entretanto, que ele não é a única vítima destes miúdos e que há pelo menos mais um colega que é agredido devido à cor da sua pele. Apetece-me dizer “Como é possível que isto ainda seja um tema em 2021?” mas sei que o caminho ainda agora começou.

Já procurámos recursos para lidarmos melhor com esta situação e para o ajudarmos a sair dela o mais intocado possível mas sabemos que o trabalho deve ser nosso porque não há soluções universais,. Há coisas que, para nós, têm sido fundamentais para navegar nestes dias: lembrar-lhe que ele é uma criança inteligente, curiosa, educada e muito amada e que nada disso se apaga com as palavras de outras pessoas; explicar-lhe que muitas destas agressões são o resultado de falta de auto-estima ou sentimento de inferioridade; mostrar-lhe que ele se pode e deve defender sempre que o queira e consiga fazer, em igual medida (o que significa responder na mesma moeda se a agressão alguma vez for física); tentar evitar a companhia destas crianças na medida do possível e sem nunca se isolar em momento algum; e, para mim talvez a coisa mais importante de todas, nunca mas NUNCA se calar face a uma injustiça, mesmo que seja outra pessoa a sofrê-la. É importante que ele (e os nossos outros filhos, claro) possa compreender que todos temos momentos difíceis, todos temos as nossas inseguranças e fraquezas mas que NADA disso justifica agredir (fisica ou verbalmente) outra pessoa.

Bem sei que o bullying não é de agora nem sequer vai acabar. Também se costuma dizer que as crianças são crueis e eu até aceito que possam algumas vezes dizer o que pensam sem compreender as consequências das suas palavras. O que não posso aceitar é ficar de braços cruzados, culpar os meus filhos apenas por existirem ou por não corresponderem à ideia que os outros têm de uma criança normal, desculpar os agressores por alguma falta de acompanhamento em casa ou no âmbito escolar. Não mudaria de ideias se fossem os nossos filhos os agressores: exijo deles exactamente o mesmo nível de empatia, de tolerância e respeito pelas regras de vida em sociedade que reclamo dos outros. Infelizmente, vejo no mundo dos adultos as mesmas falhas: a falta de respeito pelos outros, um individualismo cego que se manifesta nas coisas mais mundanas, uma triste incapacidade de sentirem empatia pelas pessoas que mais sofrem ou que estão mais desfavorecidas. E por isso sei que o problema é também nosso, dos adultos. Mas tenho esperança que, educando os nossos filhos para serem pessoas melhores, fazendo um esforço para que eles compreendam o papel de cada um no mundo, talvez possamos trazer para esta conversa uma centelha (mínima) de esperança. Neste momento, mais nada sei que fazer.

Aquele em que o absurdo se torna real

TW: se forem muito impressionáveis, não continuem a ler este post. Tem uma fotografia que pode impressionar pessoas mais sensíveis.

Sou dadora de sangue. Sou-o com muito orgulho e um espécie de sentido de missão herdado do meu avô materno, a quem sempre conheci como um dador. Gosto de dar sangue, tenho boa veia e por isso raramente demoro mais do que cinco, dez minutos a atingir a quantidade ideal.

Há coisa de um mês, chamaram-me para dar plasma. A senhora ao telefone explicou-me que era quase a mesma coisa e perguntou se eu me importava de ir lá e eu acedi logo, nem me pareceu existir outra opção a não ser aceitar. O único problema, descobri depois, era que o processo não era exactamente o mesmo.

Na data marcada, cheguei com tempo para preencher o questionário, para falar com uma enfermeira e ter a certeza que tudo estava bem comigo. E, quando passei â sala propriamente dita, descobri que o dom se faz por uma espécie de hemodiálise, com a ajuda de uma máquina por onde o sangue passa para separar o plasma e que depois devolve o sangue através da mesma veia as vezes necessárias para quantidade acordada. Explicaram-me como tudo funcionava, ofereceram-me uma bebida fresca e lá começou. Tudo se estava a passar bem, o sangue saía, era separado do plasma e voltava a entrar no meu corpo. Eu estava tranquila. Até à última volta, em que lentamente comecei a perder as forças e quase os sentidos sem perceber muito bem o que estava acontecer. As enfermeiras ainda perceberam a tempo, pernas ao alto, medição de tensão e uma coca-cola bem fresca para despertar. Meia hora depois, estava fina. Assustada mas fina e pronta para voltar para casa. Tinha sido uma experiência esquisita mas eu estava decidida a dar uma segunda oportunidade.

Na segunda-feira passada, essa segunda oportunidade aconteceu. Eu não ia muito segura porque tinha a memória da última vez bem fresca mas parecia-me parvo não voltar a tentar. Lembrei às enfermeiras como tinha sido a primeira vez e elas garantiram que me iam acompanhar de perto para que a experiência não se repetia. E não se repetiu: aconteceu uma coisa totalmente diferente.

Plasma.jpg

Sentei-me e pedi logo uma coca-cola para encurtar caminho. A máquina começou o seu trabalho, vi o sangue a sair tranquilamente, o plasma a ser separado e o sangue a fazer depois o seu caminho de volta. Mas, de repente, a máquina apitou e a enfermeira veio ao pé de mim: alguma coisa estava a correr mal. Aparentemente, explicou-me ela, a pressão era demasiado alta e o sangue não estava a conseguir regressar à veia. Lá conferenciou com uma colega e ambas concluíram que o melhor era não continuar. Deram-me um pouco de pomada para possíveis hematomas e concordámos que o melhor era eu voltar ao dom de sangue e nada mais.

Saí bem, regressei a casa meio dorida mas nada de especial. O pior foi nos dias seguintes: não só o hematoma se espalhou pelo braço, como tinha uma parte que parecia mesmo infectada. Deixei de poder mexer o braço normalmente e comecei a ficar um bocado preocupada com o avançar das coisas. Precisei de ver um médico, que parecia não estar a acreditar na história do dom de plasma, mas que me medicou e tranquilizou. As marcas continuam cá mas pararam de alastrar e parece tudo sob controlo.

Não há dia em que não nos preocupemos com a nossa saúde, especialmente de há um ano para cá. Mas esquecemo-nos que há coisas que vão continuar a acontecer, independentemente da pandemia. E coisas meio absurdas e inesperadas, que nunca sequer tínhamos imaginado. Por isso, vale mais viver um dia de cada vez, sem pânicos desnecessários, cumprindo à risca as regras sanitárias. O que tem de ser tem (mesmo) muita força.

(este post é sobre estar num limbo)

Esta semana, os miúdos voltaram à escola depois de mais duas semanas de confinamento. Apanharam-me de surpresa, eu que ando sempre atenta às comunicações do governo e não pude antever o encerramento das escolas. Desta vez, fiquei eu em casa com eles e, apesar de estar oficialmente de licença para poder acompanhá-los, desta vez tive mesmo de trabalhar e foi o inferno.

Isto em parte explica a minha ausência do blogue mas não é tudo.

Eu, como muitas pessoas que leio por aí, tinha grandes esperanças que este ano fosse um ano de recuperação, de renovação e de regresso à vida normal possível. E por isso, não é de estranhar que o início do ano tenha rebentado com essas ilusões todas. O tempo gelado, cinzento e sombrio não ajudou a lidar com os números horríveis em Portugal, com a ameaça de resultados semelhantes aqui, com o mês de Janeiro em todo o mundo. A antiga creche dos miúdos fechou com treze casos positivos, entre educadoras e crianças e foi notícia de jornal. As vacinas vinham mas depois parece que não iam chegar para o que foi encomendado, depois pessoas passaram à frente dos prioritários a serem vacinados, e aqui a vacinação parece avançar a passo de caracol.

Aconteceram as eleições presidenciais em Portugal, a que assisti com um grande amargo de boca. Primeiro, porque quando fiz o cartão de cidadão não me perguntaram se me queria recensear nesse momento, como parece ser o processo habitual. E eu deixei passar o tempo, convencida que estava do meu recensamento aqui (já aqui tinha votado para as eleições europeias e eleições comunais, porque razão isso não serve para as presidenciais é um mistério…). O resultado: chegou a véspera da eleições e eu descobri que não podia votar nas eleições mais importantes de que me lembro. E isso leva-me ao segundo ponto: nas últimas eleições legislativas, fiquei feliz com os resultados porque Portugal parecia ser um dos únicos países da União Europeia a ter conseguido manter a extrema.direita fora de posições de poder, limitando-se a um único deputado. Estas eleições presidenciais mudaram tudo e a extrema direita foi a terceira força mais votada.

Não sou filiada em nenhum partido mas cresci numa casa de esquerda e é nos valores da esquerda que me revejo. Não concordo totalmente com as posições de um único partido de esquerda, antes com um somatório das posições mais importantes (direitos pessoais, enquadramento na União Europeia, políticas sociais) entre os partidos de esquerda. Mas, mais do que ideais políticos, há valores humanitários que são mais importantes para mim: a liberdade, o respeito pelos outros, o direito às escolhas individuais e o multiculturalismo. Eu quero viver numa sociedade onde todos têm voz, onde aprendemos uns com os outros, onde as pessoas podem decidir o que querem fazer com o seu corpo, onde as escolhas e orientações sexuais ou religiosas não transformam as pessoas em alvos a abater. Saber que há meio milhão de portugueses para quem esse valores básicos de convivência não são importantes (sendo, no limite, valores a combater) deixou-me triste, zangada, desiludida. E com vontade de fazer mais pela sociedade, seja de que forma for (as ideias estão de molho).

Depois, a minha mãe foi internada. Primeiro, sem saberem, muito bem porquê, como precaução. Sozinha numa enfermaria até o teste COVID vir negativo, depois numa enfermaria partilhada mas sem poder receber visitas. Entres exames e muitas dores, lá foi diagnosticada e operada poucos dias depois. É difícil não ter medo de estar internado nos dias que correm: e se fosse infectada durante a estadia no hospital? Claro que os hospitais serão possivelmente dos ambientes mais seguros neste momento mas uma pessoa ouvia falar de surtos em serviços hospitalares e até se arrepiava. Mas junta a minha voz ao coro de vozes a defender o nosso sistema nacional de saúde: a minha mãe foi acompanhada exemplarmente pela equipa médica, foi levada a Lisboa a fazer os exames não disponíveis em Portalegre e foi operada num curto espaço de tempo, mesmo tendo em conta as restrições que todos sabemos estão em vigor neste momento. Sinto-me grata por tudo ter corrido bem e triste por ter acompanhado tudo a dois mil quilómetros de distância…

E finalmente esta espécie de confinamento 2.0, estas duas semanas que se dividiram entre aulas à distância e férias de Carnaval. No ano passado, passei mais dois meses em casa com eles e não me pareceu tão mau. Talvez pelo medo e pela sensação de que, estando todos em casa, os podia proteger de uma doença desconhecida e também por estarmos na Primavera mas foram meses menos duros. Estas duas semanas arrasaram com o meu sistema nervoso: de um lado, um filho independente no que diz respeito à escola e dois pequenos a precisarem de apoio constante: por outro, obrigações profissionais a que não pude escapar e com prazos de entrega pouco flexíveis. Juntem a isso a minha incapacidade de organizar actividades para eles, o cansaço natural de um ano de pandemia, três personalidades que só estão bem aos gritos, à procura de conflitos, que parecem ter problemas de audição e que, fruto do confinamento, não se podem ver à frente e não podem viver uns sem os outros. O resultado: CABUM! Isto foi a minha cabeça a explodir.

Finalmente, já há luz quando acordamos. Finalmente, ainda há luz quando damos banhos e preparamos o jantar. Há países onde a vacinação corre muito bem e as pessoas fazem planos para voltar a viver como antes. Os miúdos voltaram à escola e posso trabalhar sem gritar com ninguém. Tive sempre trabalho e agradeço muitas vezes isso, porque sem trabalho durante este ano teria certamente fundido o resto dos fusíveis. A nossa família continua de saúde, nós também mas com a sensação de que estamos a escapar ao vírus apenas por um triz (já três casos nas turmas deles, que os obrigaram a ficar mais em casa) mas sabemos que fazemos a nossa parte e que, caso nos venha a tocar a nós, não foi por desleixo ou falta de cuidado. Faz quase um ano que começámos a viver este pesadelo que ainda não tem fim à vista. E eu, se ainda não dei totalmente em maluca até agora, talvez consiga manter mais alguns meses de sanidade…

Augusto, quatro anos de vida

Estava muito, muito frio. O termómetro marcava -10º mas não me lembro de haver neve lá fora. E às 10:30 da manhá do dia dezanove de Janeiro de 2017 nascia o Augusto.

Foi a segunda vez que passei por um parto completamente sozinha: o pai precisou de ficar com os outros filhos nessas duas vezes e eu tive que me desenrascar em duas maternidades diferentes, numa língua diferente. Mas no dia em que o Augusto nasceu, ainda houve outra coisa diferente: eu estava grávida de trinta e cinco semanas e, portanto, ele era prematuro. Assim que ele chegou ao mundo, disseram-me para lhe dar um beijinho e levaram-no numa incubadora. E eu fiquei sozinha, sem filho depois de o ter parido.

Um parto às trinta e cinco semanas está muito longe de uma tragédia. Na prática, ele ficou na neonatologia durante uma semana apenas para cumprir calendário e por precaução. Se tivesse nascido quatro dias depois, já com trinta e seis semanas, a história tinha sido outra e eu não teria conhecido os sinos dos monitores, o calor da incubadora, os biberões pequeninos que lhe enchiam a barriga. Passei uma semana no hospital, a acompanhá-lo e a extrair leite religiosamente de três em três horas, dia e noite, até sairmos do hospital com três litros de leite numa geladeira. Ao terceiro dia, ele saiu da incubadora para uma cama aquecida e tudo se tornou mais fácil de suportar. Por saber como me senti naquela semana, encho-me de admiração pelo sacrifício e esforço dos pais cujos bebés chegam muito, muito antes do tempo, lutando pela sua sobrevivência naquele ambiente esterilizado.

Estava doente antes do parto e, com o esforço cujos pormenores guardo para mim, perdi a voz. Enquanto estive no hospital, usei máscara em todas as vezes que entrei na neonatologia para não espalhar germes ou vírus àqueles pequeninos guerreiros, sempre tão bem tratados. E lembro-me de me sentir tão limtada, de não poder beijar o meu bebé a toda a hora, de ter de controlar a vontade insuportável de tossir. Mal desconfiava eu…

Fast-forward para quatro anos depois. O Augusto anda na pré-pré-primária e tem a mesma professora que os irmãos tiveram. É popular na escola entre grandes e pequenos e a professora confessa que, se não fosse o charme dele, era muito difícil lidar com a teimosia dele todos os dias. Ainda ontem a professora me enviou um e-mail depois das aulas, queixando-se duma coisa que nós sabemos bem aqui em casa: ele não ouve ninguém e, quando ouve, só toma nota do que lhe convém. Foi uma bela maneira de iniciar a contagem decrescente para os quatro anos…

Fora isso, o nosso Gustinho tem um coração enorme e tenta abraçar os irmãos sempre que pode, mesmo que estes não o deixem chegar muito perto. Até há pouco tempo, acordava sempre com um sorriso na cara mas ultimamente quer continuar a dormir e não raras vezes faz uma pequena birra porque não sabe o que quer comer. Mas, em sua defesa, as suas birras nunca duram muito tempo e é o mais fácil de recuperar daquele estado de birra que deixa os miúdos do lado de lá.

Já vai falando Luxemburguês (parece-me o mais precoce dos três) e fala bem Francès e Português. As suas coisas preferidas são os bonecos animados do Jurassic World, a Patrulha Pata, pizza, sopa, bananas, brincar com super-heróis e bater com coisas barulhentas em todo o lado. Não tem jeito nenhum para pegar no Perinha mas gosta de o fazer para o entregar aos irmãos. Ainda gosta de colo, de saltar e trepar por todo o lado e da escola. Quando não gosta de um colega (o que é raro), (infelizmente) não se contém e diz-lhe em voz alta e para todos os outros colegas e pais ouvirem…

Nunca desejei três filhos. Na minha cabeça, dois era o número ideal e é compreensível: um pai e uma mãe chegam para dar conta dos dois. Mas o Augusto veio animar esta casa, veio desiquilibrar o barco, veio com muitos beijinhos e abraços para dar. E veio com um coração gigante, não é por eu ser mãe dele, com amor de sobra pelos outros. E pronto, a família ficou completa com a chegada dele, só me ficam a faltar braços para pegar nos três ao mesmo tempo. Há quatro anos atrás, Trump subia à presidência e eu esperava pela alta do hospital. Este ano, Biden sobe à presidência e todos esperamos pela alta desta loucura toda. Mas um sorriso do Gustinho ajuda a esquecer <3

2021 > 2020

Quase consigo ouvir o suspiro colectivo, mundial, universal que o fim deste ano traz. Há muitas pessoas para quem este ano foi terrível, há outras pessoas que tiveram quase o melhor ano de quem têm memória, há quem acabe o ano a sentir-se assim-assim.

Nós fomos (felizmente) poupados ao sofrimento individual: não perdemos o nosso emprego, não ficámos doentes nem ninguém da nossa família ficou doente e as pessoas que conhecemos e adoeceram não desenvolveram as piores formas da doença. Continuamos a ter um tecto sobre a nossa cabeça, comida na mesa, mantivemo-nos em contacto com família e amigos.

Mas eu não pude escapar ao sofrimento colectivo. Chorei no primeiro dia em que passei pelas escolas fechadas, chorei a ver as cidades vazias e os hospitais a transbordar, chorei a ver o desespero de quem ainda não sabia lidar com este vírus, chorei com a ideia de acesso limitado aos supermercados. Chorei a ver os números a aumentarem exponencialmente, chorei nas noites consecutivas em que só existiam notícias sobre o vírus. Foi doloroso e ainda é doloroso assistir à vida nos países que decidiram ignorar o perigo desta pandemia.

Hoje fui ler as minhas resoluções para 2020 e ri-me, claro está. Uma delas era “Sair mais de casa”, o que só por si é hilariante. Outras implicavam um espaço mental que não existiu durante estes últimos dez meses.

Numa das últimas chamadas de trabalho em que participei, uma colega disse que 2021 não poderia ser pior do que este ano. E eu ri-me e disse-lhe que todos sabemos que, depois de tudo o que aconteceu este ano, 2021 pode ainda ser muito pior. A caixa de Pandora abriu-se este ano e agora vai ser difícil enfiar tudo novamente lá dentro.

Apesar de não querer fazer nenhuma resolução e de saber que os nossos planos não valem nada face a um acontecimento como este, só quero fazer promessas a mim mesma: acreditar sempre na ciência; não confiar cegamente na humanidade; procurar sempre mais e melhor informação; deixar a vida rolar, sem planos, sem pressas e sem grandes decepções; celebrar as pequenas vitórias e partilhar os momentos de tristeza.

Saúde e liberdade de movimentos, é o que desejo para todos. E que nos possamos (re)ver muito, muito em breve! Feliz Ano Novo!

2020, um balanço: lidar com um mundo em colapso

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está: quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Hoje quero falar sobre coisas que me fizeram bem, coisas que me ajudaram a relaxar e a esquecer-me do que se passava lá fora (mesmo quando estavam relacionadas com esses mesmos acontecimentos). Quero falar das coisas que contrabalançaram as cidades vazias, os tanques em Bergamo a transportar os caixões para os quais já não havia lugar, as pessoas a morrerem subitamente nas ruas de Wuhan, as pessoas a quem falta companhia, trabalho e dinheiro, as pessoas que morreram sozinhas num quarto de hospital, as pessoas que, meses depois de terem sido dadas como curadas, continuam a sofrer. Quero falar das coisas que me ajudaram a manter a esperança, a usar bem o meu tempo e a ter (muito de vez em quando) esperança que tudo acabaria bem.

Exercício físico

No momento em que vos escrevo, levo 42 semanas consecutivas a atingir o meu objectivo semanal de exercício físico, num total de 2,021 minutos de exercício (ou seja, mais de 36 horas) . Sei isto porque uso uma aplicação que mantém estes registos, o que funciona como uma óptima fonte de motivação. Na maior parte das semanas, isto implicou muita disciplina e rigor: levantar-me três vezes por semana às 5:30 da manhã para fazer exercício e poder despachar-me a mim e depois aos miúdos antes da escola e do trabalho; foi arranjar maneira de enfiar uma sessão fora do plano quando, por algum motivo, não consegui fazer nos dias que tinha planificado; muitas vezes, foi fazer exercício e tentar manter a sanidade mental com três filhos a brigarem mesmo ao lado.

Perdi peso e bastante volume, mas ainda vou longe dos meus objectivos iniciais. Mas o melhor foi sentir que me superei em todas estas semanas, que fui mais forte do que a minha cabeça e do que aqueles dias em me custou tanto sair da cama. E é sentir-me mais saudável e mais capaz, menos cansada ao final do dia, mais forte.

Podcasts

Parece parvo, eu sei. Mas umas das coisas que eu decidi fazer em 2020, mesmo antes de começar todo o shit show que foi este ano, foi aprender mais. Primeiro, porque já há um tempo que sentia que não estava habituada a ouvir posições contrárias às minhas; e segundo, porque decidi rentabilizar o meu tempo com coisas úteis. Vivermos numa bolha constituída apenas de pessoas e opiniões semelhantes às nossas é talvez um dos maiores perigos que corremos hoje em dia e eu decidi fazer o mínimo possível para mudar isso. Os podcasts que mais ouvi este ano, excluindo alguns que foram só séries únicas ou sobre um tema em específico, foram (sem ordem de preferência):


The New Abnormal: um podcast dos jornalistas Rick Wilson e Molly Jong-Fast sobre o que se vai passando nos Estados Unidos. Rick é um republicano e um dos fundadores do The Lincoln Project (uma plataforma de republicanos contra Trump e que tiveram um papel fundamental na sua derrota nestas eleições) e Molly é uma comentadora da ala esquerda - juntos, comentam os acontecimentos políticos americanos com muita acidez e humor;

Conan O’Brien Needs a Friend: ele não precisa de apresentação e os convidados dele também não. O ponto de partida é sempre o mesmo: o convidado é alguém que Conan admira. Adorei os episódios com a Michelle Obama, Jim Carrey, Jeff Goldblum ou Wanda Sykes mas são todos mesmo bons!

Eixo do Mal: a versão podcast do programa da Sic Notícias. Sou fã do Luís Pedro Nunes, gosto do tom um pouco amargo da Clara Ferreira Alves, admito as posições do Daniel Oliveira e simpatizo com o portista Pedro Marques Lopes.

O Fred e a Inês Falam de Coisas: já aqui falei deste podcast e continua a ser um dos meus preferidos. O Fred e a Inês são dois amigos que vivem no Porto e que se juntam para conversar sobre assuntos importantes, fracturantes e divertidos. Adoro o sentido de humor deles e, apesar da nosa diferença de idades, sinto que me podia sentar àquela mesa com os meus amigos.

Governo Sombra: a versão podcast de outro programa da Sic Notícias. Sou muito fã do Ricardo Araújo Pereira (nunca vi um comunista tão giro e tão divertido…), gosto muito do Pedro Mexia desde o tempo do Estado Civil (saudades da blogosfera dos anos ‘00) e simpatizo moderamente com o João Miguel Tavares (cada vez menos mas enfim) por ser meu conterrâneo.

Hidden Brain: um podcast de Shankar Vedantan que explora a psicologia do comportamente humano e que traz especialistas que falam de coisas como a forma como exercemos influência sobre os outros, os resultados do confinamento e teletrabalho no nosso retorno ao escritório ou no poder da inveja como um factor de motivação.

This is Important: um podcast excelente para quem acompanhava a série Workaholics. É um podcast sobre as coisas mais parvas de que há memória (do género como é que vocês se sentam para fazer cocó…) e não recomendado a pessoas que se levam demasiado a sério.

Sem moderação: uma parceria entre a TSF e o Canal Q. Já aqui falei do Daniel Oliveira mas gosto de ouviir este podcast especialmente pelas intervenções do Francisco Mendes da Silva e do José Eduardo Martins, exactamente por se situarem num quadrante político que é praticamente o oposto ao meu. Muito interessante para questionar a minhas próprias posições.

PBX: um podcast que junta o culto e moderado Pedro Mexia com a doce e sonhadora Inês Maria Meneses em conversas sobre cinema, música e literatura. Uma maravilha para quem quer saber mais sobre o que se passa nas artes e letras, sempre com belos interlúdios musicais.

Irritações: a versão podcast de um programa da Sic Radical, com o Luís Pedro Nunes (de quem já me declarei fã), o sportinguista ferrenho José de Pina, a clássica Carla Quevedo e a divertida Joana Marques. Em cada episódio, cada um traz duas das coisas que os irritaram durante a semana e é o conteúdo de sonho para quem adora queixar-se! Fico sempre a pensar que irritação levaria semana a semana!

WTF: o podcast de Marc Maron é, para mim, o rei dos podcasts. Em cada episódio, ele entrevista alguém famoso (a entrevista dele ao Barack Obama é legendária!) e fala sobre a sua própria vida, sobre política e relações, sobre os seus gatos e a sua longa viagem em direcção à auto-compreensão e melhoria. É outro tipo de que gostaria de ser amiga!

Agora, agora e mais agora: descobri este podcast do historiador Rui Tavares já um pouco tarde mas não posso deixar de recomendar. São episódios que se passam algures em mil anos de história europeia, alguns mesmo antes do nascimento de Jesus Cristo e cada episódio está tão cheio de curiosidades e factos históricos que é impossível não ouvir e ficar boquiaberta.

Trabalho

Eu sei que um bocado parvo mas o trabalho também ajudou a passar o ano. No princípio do confinamento, passei umas nove semanas em casa de licença a tomar conta dos três e a tentar garantir que cumpriam os deveres escolares, ao mesmo tempo que preparava quantidades industriais de lanches e snacks. Foi uma opção nossa, da nossa família e não uma imposição. Tentei o meu melhor para os distrair e para os manter afastados do clima de depressão geral que se sentia assim que ligávamos a televisão.

Mas não posso mentir e dizer que não fiquei contente quando as escolas voltaram a abrir e eu pude dedicar-me a tempo inteiro ao trabalho, mesmo que o fizesse a partir de casa e sem os meus dois fiéis monitores gigantes. Poder trabalhar equivalia, para mim, a recuperar uma parte das rotinas e da normalidade, ao mesmo tempo em que me devolvia um propósito e um desafio constante.

A meio do confinamento, recebemos a notícia de que a nossa empresa tinha sido comprada por uma empresa maior. Esta notícia, apesar de ser um sinal de que este mercado não estava estagnado e de que novos desafios estavam para vir, também assustou toda a gente porque já sabemos que fusão de duas empresas = despedimentos para poupar dinheiro e consolidar posições e departamentos. No Verão. o novo CEO comunicou-nos numa videoconferência que seria necessário despedir 10% da força de trabalho e eu chorei. Foi uma chapada tão inesperada que nem me ocorria dizer nada, só chorar.

Não fui despedida. E, felizmente, nenhum dos meus colegas mais próximos foi despedido. Aconteceu, pelo contrário, vermo-nos inundados de ainda mais trabalho. de colaborações e pedidos. E todo este ano em teletrabalho permitiu que me organizasse à minha maneira, cumprindo o número de horas necessário mas distribuindo-as segundo a minha conveniência e permitindo um maior equilíbrio entre a minha vida pessoal e a minha vida profissional. Acabei o ano a agradecer à minha chefe com uma garrafa de Conventual tinto toda a confiança que depositou em mim e a liberdade de me organizar autonomamente durante estes meses.

Foi um bom ano, all things considered.

2020, um balanço: as viagens possíveis

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está: quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

O meu ano em livros

Muitas pessoas que conheço lamentaram este ter sido um ano em que tiveram pouca disponibilidade mental para ler. É perfeitamente compreensível, acho que todos tínhamos demasiadas coisas em que pensar e muitas vezes essas coisas ocupavam todo o espaço disponível e todos os momentos de sossego. Eu comprometi-me no início do ano a ler doze livros, um por cada mês do ano. Apesar de não ser um objectivo ambicioso, era o número que eu achava possível, realista depois de ter falhado o meu objectivo em 2019.

Faltam dois dias para o ano acabar e eu li quinze livros! Potencialmente, ainda posso fechar o décimo sexto antes da meia-noite de quinta-feira mas já me dou por feliz com estes já terminados. A minha leitura em 2020 fez-se maioritariamente nos momentos antes de adormecer, já deitada na nossa cama. Todos os dias de confinamento com filhos em casa e sem poder sair para muitos sítios tornaram este desafio um pouco mais difícil mas não impossível! Deixo-vos aqui umas breves impressões sobre o que li no ano da pandemia, sem qualquer ordem específica (senão a da torre que fotografei na minha banca de cabeceira).

  1. Flecha, Matilde Campilho: comprei este livro durante as nossas férias de Verão e foi o primeiro livro dela que li. Sei que teve um começo muito aplaudido no campo da poesia e já tinha vontade de experimentar a ler. É um livro muito interessante e enigmático, composto por micro contos, aparentemente independentes mas atravessados por uma flecha. Dava um belo conjunto de curtas-metragens, tal é a capacidade da Matilde de descrever sucintamente uma cena, fazendo-nos sentir perante um quadro cheio de pormenores. Also, adoro a voz dela (é a voz deste anúncio) e na minha cabeça cada página foi lida por ela.

  2. 12 Rules for Life, Jordan B. Peterson: comprei este livro na Waterstones em Twickenham, na última viagem de trabalho que fiz em Janeiro deste ano. Li as primeiras páginas a jantar sozinha numa pizzaria perto do hotel, acompanhada de um copo solitário de vinho tinto. O pretexto do livro é muito interessante; doze regras para viver uma vida com menos caos. Esta questão do caos foi o que me fez comprá-lo, porque é assim que sinto a nossa casa às vezes. O autor enumera cada regra e faz como que um trabalho de arqueologia intenso e incrivelmente detalhado para explicar cada regra ao longo dos tempos e mistura biologia com teologia e psicologia, o que torna o livro extremamente denso e um pouco difícil de ler. Por si só, cada regra faz todo o sentido mas deixo-vos as que mais me falaram ao coração (e ao cérebro, vá):

    Do not let your children do anything that makes you dislike them.

    Set your house in perfect order before you criticize the world.

  3. Seven signs of life, Aoife Abbey: há quem goste de histórias de crimes reais, eu gosto de histórias de médicos reais. Aoife Abbey é uma médica dos cuidados intensivos e conta episódios reais passados na sua incursão por diversos hospitais. Alguns doentes morrem, outros sobrevivem e têm o direito como de renascer. Lê-se facil e rapidamente, faz pensar muito na morte e na imprevisibilidade da vida, desperta sentimentos de esperança mas também de tristeza e resignação.

  4. My sister, the serial killer, Oyinkan Braithwaite: um livro mais ou menos curto que também trouxe dos subúrbios de Londres e que comprei pela capa e pelo título (sim, eu faço isso e, apesar de já ter apanhado algumas desilusões, normalmente não me engano!). Conta as história de duas irmãs nigerianas muito diferentes e ligadas pelo sangue (metaforica e literalmente falando) e é um livro divertido, especialmente se considerarmos a permissa algo inesperada que despoleta toda a história.

  5. Wow, no thank you, Samantha Irby: decididamente um dos meus preferidos do ano e a autora passou também a ser uma das minhas preferidas! Samantha escreve ensaios sobre as coisas banais da vida, sobre a sua infância traumática e a sua relação com os seus pais, sobre os seus hábitos de consumo, sobre relações mas tudo sob um ponto de vista auto-depreciativo que eu simplesmente adoro. Ela ri-se de si mesma muito antes de qualquer outra pessoa, ela apresenta-se com todos os seus defeitos físicos e de carácter e bebe muito da cultura pop. Adoro, já tinha lido outro livro e tenho o terceiro em fila de espera.

  6. My year of rest and relaxation, Ottessa Moshfegh: uma autêntica perda de tempo, na minha opinião. A história é a de uma rapariga que, perdida entre uma família ausente e a falta de horizontes, decide passar um ano inteiro sem fazer nada e, sempre que possível, a dormir. Percebo mais ou menos o hype - afinal, a protagonista é uma espécie de millennial encharcada em comprimidos para dormir - mas não foi de todo uma leitura agradável e nem sequer útil.

  7. White Fragility. Robin Diangelo: neste ano louco em todos os aspectos, também não fui imune às grande questões raciais, especiamente à problemática Black Lives Matter. A partir da premissa de que somos todos racistas (em que eu acredito profundamente porque sinto que fui educada e formada numa sociedade inerentemente desigual e racista), quis procurar mais literatura sobre o assunto e este foi um dos livros que comprei. É um livro interessante mas acho que se resume a um princípio: nós, brancos, não conseguimos admitir que somos racistas porque isso faz de nós imediatamente más pessoas. Então, para não nos sentirmos assim, acabamos por não nos questionarmos o suficiente e por perpetuar um sistema que oprime as minorias. Bom ponto de partida mas acho que há literatura muito mais pertinente e interessante online.

  8. Fiebre Tropical, Juliana Delgado Lopera: um livro muito curioso mas que falhou um pouco no desenvolvimento da história e, particularmente, no seu final. Conta a história de Francisca, uma adolescente colombiana que se vê arrastada para Miami pela sua mãe. Procuram uma vida melhor, ainda o tal Sonho Americano e acabam ligadas a uma igreja evangélica que consome tudo à sua volta. Francisca apaixona-se pela filha do pastor, Carmen, mas este amor nunca se materializa. A parte mais interessante do livro é a maneira como Juliana alterna a voz narradora entre o Inglês e o Castelhano (na sua variante colombiana), marcado o ritmo com as suas interjeições, regionalismos e muita salsa!

  9. Myra, Maria Velho da Costa: nunca tinha lido nada da autora e foi a notícia da sua morte que me empurrou para escolher um livro dela. Myra é a história de uma rapariga de Leste que em Portugal encontra uma vida cheia de abusos, enganos mas também de amor e companheirismo e fantasia. Acompanhada por Rambo, um cão que ela mesma salva de uma vida de violência, Myra é acolhida em casa de gente rica mas acaba por fugir, caminhando pela planície alentejana em direcção ao Sul até encontrar o seu príncipe. Depois deste encontro, a vida de Myra é feita de mistério, felicidade e, finalmente, de dor e tragédia. Um livro que foi como um murro no estômago e que me deu vontade de ler outras obras da mesma autora.

  10. The Silence, Dom Delillo: o pior livro que li este ano. E nos últimos anos, para dizer a verdade. A ideia (um brutal e inesperado corte de electricidade deixa cidades inteiras sem comunicações e faz mesmo despenhar aviões) parece muito interessante mas depois as personagens soltam apenas frases sem sentido, citações de Albert Einstein e não acontece nada. Uma grande decepção.

  11. In the dream house, Carmen Maria Machado: um livro muito interessante e emocional sobre os abusos psicológicos e violência doméstica numa relação queer. É, ao mesmo tempo, um documento teórico sobre um fenómeno ainda pouco estudado (a percepção geral é a de que a violência é mais provável entre dois homens e não entre duas mulheres) e um testemunho pessoal e poético (mesmo na sua dureza) da autora.

  12. The lying life of adults, Elena Ferrante: para ir directa ao assunto, foi uma grande desilusão. Eu não sou grande fã da colecção d’a Amiga Genial (apenas li ainda o primeiro volume) mas caí de amores pela autora quando li Os dias do abandono. Que livro tão sufocante e angustiante e que, ao mesmo tempo, nos oferece um espelho para as nossas próprias relações e falhanços na maternidade e nos faz sofrer com os fantasmas daquela mulher. Este último livro começa bem, com a sugestão de que existe um terrível segredo entre o pai da protagonista e a sua irmã para acabar sem grandes explicações e com uma das piores cenas de iniciação sexual que alguma vez li (não que tenha lido muitas mas esta foi tão desenxabida e quase enfiada a ferros antes do fim da história que me fez desejar não a ter lido). Bravo para a maneira como a autora descreve as várias Nápoles, como descreve os pequenos mafiosos que não sabem ouvir um não e até a maneira viciosa como a protagonista decide que quer o namorado da amiga mas isto precisava de uns quantos volumes a mais.

  13. You were born for this, Chani Nicholas: este foi o ano em que eu, sem vergonha o assumo, me interessei bastante por astrologia. Talvez porque a ausência de guia para navegar uma pandemia me tenha feito tremer, talvez porque estou a envelhecer e não consigo encontrar conforto na religião - li umas coisas sobre astrologia, pesquisei sobre o assunto e fiz até leituras da minha carta astral. Tudo com uma boa dose de cepticismo, evidentemente, mas também com uma certa dose de porque não?.

  14. Over the top, Jonathan Van Ness: foi dos primeiros livros que li este ano. É uma auto-biografia, leve, divertida e com algumas revelações inesperadas mas que só faz totalmente sentido se forem fãs do Queer Eye (a série na Netflix), em que ele é um dos protagonistas. Eu sou fã da série e também dele e dos seus maneirismos over the top e por isso li este livro sempre com a voz dele na cabeça. Ideal para ler no Verão :)

  15. Apropos of Nothing, Woody Allen: conheço bem as polémicas em que Woody Allen tem estado envolvido mas digo já: acho que sou daquelas pessoas que conseguem dissociar um criador e a sua obra da sua vida pessoal. Digo acho porque para mim não é uma posição definitiva e continuo aberta a novos factos - tudo para evitar a cancel culture, de que não sou muito fã. Dito isto, este é um livro divertido e muito interessante, às vezes um pouco difícil de acompanhar (quando ele faz name dropping e conta tudo sobre produtores e escritores com quem trabalhou nos anos 50, por exemplo). Inevitavelmente, traz à luz a sua perspectiva no caso que o opõe a Mia Farrow, perspectiva essa que me parece sincera, lógica e suficientemente defendida. E fez-me sorrir com a idade que ele repete ao longo do livro: ele não é um tipo intelectual, só alguém que faz o que gosta e que sempre soube adaptar-se ao meio onde se movia com algumas generalidades e ideias de sketches na manga.

2020, um balanço: saudades vezes mil

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está: quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Saudades da família, dos amigos e das festas e feiras de Verão

É mais do que evidente: depois das pessoas que perderam a vida, das pessoas que continuam doentes ou das pessoas que perderam o trabalho, a coisa mais horrível desta pandemia é a nossa falta de liberdade de movimentos. Claro que chorei por razões muito diferentes durante estes nove meses mas lembro-me de, no auge do primeiro confinamento, chorar por duas coisas: ver as cidades totalmente vazias e não meter pé num supermercado durante mais de dois meses (e sim, eu sei que são problemas de primeiro mundo…).

Questões logísticas obrigaram-nos a ficar no Luxemburgo no Natal de 2019: o Mário trabalhava e não tínhamos tempo suficiente para as viagens. Portanto, a última vez que tínhamos visto a nossa família tinha sido no Verão de 2019. Quando o confinamento chegou ao Luxemburgo, acho que dificilmente alguém conseguiria imaginar a sua duração ou que as fronteiras iriam encerrar por toda a Europa mas lentamente fomos tendo essa dolorosa consciência.

Perdemos todas as nossas reservas para as férias da Páscoa mas nessa altura ainda mantínhamos a esperança de podermos ter qualquer coisa parecida com férias de Verão. Começámos a sair lentamente do confinamento no dia 25 de Maio, quando as escolas reabriram aqui. Tudo cheio de regras, de precauções, de divisões mas tudo para fazer crianças e pais sentirem-se minimamente seguros. Mas tudo em serviços mínimos: o desporto e actividades extra-curriculares estavam cancelados, as piscinas estavam fechadas, os grandes ajuntamentos de pessoas estavam (e continuam a estar) proibidos e por isso salsichas e copos de champanhe estavam fora do programa.

Eu sou uma pessoa-anti-social mas as feiras e festas de Verão aqui são tudo. Os cheiros são quase sempre os mesmos (carne grelhada, principalmente), as atracções idem aspas, só o sítio vai variando. Os miúdos não pescaram patos nem andaram no carrossel, não comemos salsichas nem eu bebi um copo de crémant, não vimos as mesmas barracas pela enésima vez. E a falta desses momentos familiares, depois de oito anos, custou. Preciso dizer que sempre pudemos sair de casa, portanto o confinamento nunca foi terrivelmente doloroso. Mas foi triste vermos cancelados todos os acontecimentos ao ar livre que sempre temos no calendário.

E depois houve a questão das nossas pessoas. Sem ir a Portugal desde Julho de 2019, passámos um ano longe da nossa família e amigos. Eu sei que me queixo de barriga cheia: há emigrantes que passam anos sem ir a Portugal. Mas nós habituámo-nos a ir pelo menos duas vezes por ano e 2020 não parecia estar de acordo com esses planos. A parte pior, sinceramente, é saber que os meus pais/irmã/avó/família do Mário não podem estar com os miúdos e os miúdos não podem ser mimados pelos avós/tios nem brincarem com os primos. É claro que tenho saudades dos nossos amigos mas sou adulta, sei lidar.

Por isso, quando finalmente fomos a Portugal (ainda a ideia de uma segunda vaga não passava disso mesmo e Portalegre tinha registado para aí um caso), limitámos as nossas visitas e os nossos contactos no geral. Mal contactámos amigos com medo da reacção ou por não sabermos se o momento era o ideal para nos misturarmos. Nós vínhamos de fora do país, acredito que é estranho para alguém que vive normalmente em Portugal receber (praticamente) estrangeiros em casa. Os únicos encontros que tivemos foram ao ar livre, em sítios públicos e com todos os cuidados que a situaçáo pedia e ainda pede mas souberam manifestamente a muito pouco.

Hoje, agradeço em silêncio a oportunidade de ter ido a Portugal no Verão porque chegou a altura do Natal e nós vamos ficar mais uma vez encalhados por terras luxemburguesas. A situação epidemiológica é grave no distrito de Portalegre e aqui não está muito melhor. Não quisemos arriscar ficarmos confinados num qualquer recolher obrigatório, não quisemos (potencialmente) transportar o vírus até à nossa família nem quisemos regressar com o virús para a nossa comunidade. E ontem, out of the blue, soubemos que um colega do Vicente foi diagnosticado positivo, o que significa teste para ele + auto-isolamento para todos nós.

Resignada, aceito as limitações, cumpro â regra as recomendaçóes das autoridades e protejo-nos ao mesmo tempo que protegemos os outros. Num país tão pequeno e com um número tão alto de casos, começa a ser muito real a sensação de que os próximos vamos ser nós. Esperando que isso não passe duma sensação infundada, aceito também as saudades, imaginando (como todos nós) quando raio vamos poder regressar a uma vida normal.

2020, um balanço: uma desilusão

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Um podcast que nunca aconteceu

Em Dezembro de 2019, veio-me uma ideia à cabeça: que tal começar um podcast? Há uns anos que ouço alguns podcasts regularmente, de temas variados, em línguas diferentes e a ideia de poder conversar com outras pessoas sempre me pareceu interessante. E depois, juntei a isso a ideia de que não tinha ainda ouvido nenhum podcast sobre parentalidade em Português. E cheguei à minha ideia final: um podcast em que pais e mães conversavam sobre como era ter filhos.

Queria fazer uma coisa bonita e por isso pedi a amigos (olá J. e olá M.!) para me ajudarem com a música e o grafismo e tudo fazia sentido. Tinha um tema, tinha separadores, tinha uma imagem e só me faltava o conteúdo.

Fiz um ficheiro todos bonito, com a lista das pessoas com quem gostava de conversar, possíveis temas, as perguntas condutoras dos episódios, o calendário das entrevistas. E cheguei mesmo a gravar duas delas (olá A. e olá C.) , mães que emanam inspiração por todos os lados. Perguntei mesmo a outras pessoas se estariam interessadas em participar para começar a perceber como me podia organizar.

Mas corria o ano de 2020, como sabem. E havia uma pandemia a acontecer. Eu estava a dividir o meu tempo entre tomar conta dos miúdos a 100% e a tentar trabalhar a partir de casa, mantendo o olho neles simultaneamente. Percebi rapidamente que não percebo nada de edição de som (nem video, vá edição no geral), sobrava-me muito pouco tempo para aprender sozinha e não queria publicar coisas sem qualidade. E depois ainda comecei a lutar com aquele síndrome do impostor: quem é que eu pensava que era para lançar um podcast sobre parentalidade?

Falhei e a vergonha fez-me enterrar esta ideia bem fundo na minha cabeça. Senti-me mal por não ser mais inteligente e ter começado a dominar as ferramentas necessárias rapidamente; senti-me mal porque mal conseguia arranjar tempo para gravar sem que os miúdos me entrassem escritório adentro aos gritos; senti-me mal por achar que não tinha nada de interessante a adicionar ao mundo, mesmo que os meus convidados sim; senti-me mal porque se calhar o tema era um bocado redutor e eu queria era falar com pessoas interessantes sobre as vidas delas, não só sobre a maneira como vivem a parentalidade.

Um ano depois, aqui estou: a fazer uma catarse pública, cheia de remorsos e de vergonha da minha inaptidão e falta de insistência mas também hiper consciente das minhas limitações pessoais e das limitações impostas pelo raio da pandemia. E no fundo acho que não desisti totalmente mas, depois do shitshow que foi este ano, recuso-me a fazer prognósticos porque esses, toda a gente sabe, são melhores no fim do jogo.