Uma pergunta difícil

Vocês, pessoas que têm filhos, respondam-me lá a uma pergunta: porque é que tiveram filhos?

Vem isto a propósito de uum tweet de uma miúda de vinte anos que li há dias, em que ela dizia que não tem nenhuma vontade de ser mãe e que as pessoas só têm filhos para poderem controlar outra pessoa e para poderem ter alguém que seja igual a elas.

Eu percebo a maioria dos argumentos de quem não quer ter filhos. Sobre-população, alterações climáticas, dificuldades finaceiras, falta de apoio familiar, uma vida confortável e livre e sem amarras. Tudo me faz sentido e posso simpatizar com a maioria dos motivos. Só não consigo perceber a crítica a quem efectivamente escolhe ter filhos.

Há pouco olhei para os nossos filhos e perguntei-me: porque é que decidi ter filhos? E fiquei meio triste porque não consigo encontrar um motivo que me tenha levado a esta decisão. Era a decisão natural, o desfecho esperado numa relação entre duas pessoas adultas que gostam uma da outra. Parece que era isto que esperavam de nós: os pais, a família, o resto da sociedade. É verdade que não fomos pressionados a fazer nada, ter filhos não foi uma obrigação. Mas é um bocado o que esperam de nós, não é?

Nunca me passou pela cabeça que ter filhos significa controlar (quase doentiamente) uma pessoa. É óbvio que crianças pequenas necessitam de um maior cuidado do que adolescentes mas há um caminho que os pais fazem com os filhos em direcção à independência e à liberdade. As crianças têm pouca noção do perigo, demoram a distinguir o bem do mal e o papel dos pais é exactamente ajudar a formar esse conceitos desde pequenos. Não é controlar, não é mandar mas também não é deixar, negligenciar, ignorar. Também nunca me passou pela cabeça ter uma Marisa pequenina: estou demasiado consciente dos meus defeitos para saber que isso seria uma má ideia!

Puxo pela cabeça e não encontro uma razão racional (passe o pleonasmo) para ter filhos: o planeta está a aquecer, há pessoas a mais no mundo, estar vivo é cada vez mais uma questão de sorte dependente do sítio onde nasces, não há ajudas financeiras por aí além, é precisa uma aldeia num mundo em que as pessoas vivem cada vez mais isoladas. A única razão que me ocorre é que nós (pais) sonhamos em deixar uma espécie de herança no mundo, a continuidade dos nossos genes. Será tudo isto apenas um reflexo de instintos primários e milenares? Não sei responder mas de uma coisa tenho certeza: não tive filhos para passar a vida a limpar cocó de rabos :)

Um post sobre bullying (porque tem mesmo de ser)

(É daqueles posts que eu não queria escrever. Arrisco-me a dizer que é daqueles posts que ninguém queria escrever ou ler. Mas, cada dia que passa, sinto que é mais e mais necessário, nem que seja para eu me livrar desta sensação de enfartamento.)

Comecemos pelo princípio: eu também sofri bullying quando andava na escola. O fenómeno não é novo, todos assistimos a situações destas, da primária à universidade, com mais ou menos efeitos nefastos sobre as vitímas. Lembro-me especificamente de dois momentos difíceis para mim: quando um colega me puxou os cabelos até a minha cabeça estar perto do chão e o ritual diário de outro colega que gozava comigo, ambos quando andava no quinto ou no sexto ano. Para resolver a primeira situação, os meus pais telefonaram aos pais do meu colega e queixaram-se , depois de não conseguirmos resultados doutra maneira; para resolver a segunda, e eu sei que isto é simultaneamente incrível e hilariante, a minha avó e a minha tia foram esperar-me à porta da escola, pediram-me que identificasse o meu colega e disseram-lhe das boas em voz bem alta e em frente de toda a gente (enquanto eu provavelmente me encolhia de vergonha). Resultados? Ambos deixaram de me incomodar e cheguei a ficar bastante amiga do segundo.

Estas são apenas duas situações que me marcaram mas eu sei que vivi mais e também sei que outras pessoas sofreram longa e enormemente com a violência, os ataques verbais e físicos, o desprezo, a chacota simplesmente porque não eram iguais aos seus agressores. E, normalmente, é isso que mais me incomoda: o bullying vem de um sítio de profunda falta de auto-estima e de intolerância das coisas mais simples e triviais. A relação mais comum entre agressor e vítima no meu tempo de escola era entre a criança inteligente, estudiosa e esforçada e a criança para quem a escola não significava absolutamente nada.

Nas últimas semanas, um video de bullying violento à porta de um liceu luxemburguês circulou pelas redes sociais e despertou a indignação de estudantes, pais e restante comunidade escolar. Ontem, numa das redes sociais em que tenho conta, circulava também um video semelhante passado em Portugal, em que uma das crianças acaba atropelada por um carro. Escolhi não ver ambos os videos porque não me sinto capaz de lidar com imagens de violência gratuita e sem sentido mas sei que, como estes, existem muitos mais videos e muitas mais agressões que ficam (felizmente) por registar.

E, no entanto, senti que precisava de escrever alguma coisa. Porquê? Porque também temos em casa uma vítima de bullying e custa imaginar que um dia nos vejamos envolvidos numa situação com esta gravidade. O Vicente tem sido agredido verbalmente por alguns colegas desde o início do ano lectivo. Algumas vezes, os colegas usam palavras que nem nós nem ele sabemos o que querem dizer (embora desconfiemos); noutras vezes, insultam-me a mim porque sabem que isso o magoa; noutras vezes, dizem-lhe coisas que também o deixam triste, como “Tu és adoptado” ou “Volta para o lixo de onde vieste”.

Tudo isto dói. A nós mas especialmente a ele, que não consegue compreender os motivos para este tipo de interacções. Muitas vezes, o simples facto de ele estar a ler um livro durante o recreio despoleta estas agressões. Já mudou de lugar na sala para se afastar destes colegas mas é difícil escapar totalmente durante o normal funcionamento da escola.

Já fizemos várias queixas ao professor, que castiga os alunos mas sem resultados. E agora estamos na fase seguinte, em que uma assistente social está envolvida para fazer uma espécie de mediação e para tentar resolver as coisas com os pais das outras crianças. Descobrimos, entretanto, que ele não é a única vítima destes miúdos e que há pelo menos mais um colega que é agredido devido à cor da sua pele. Apetece-me dizer “Como é possível que isto ainda seja um tema em 2021?” mas sei que o caminho ainda agora começou.

Já procurámos recursos para lidarmos melhor com esta situação e para o ajudarmos a sair dela o mais intocado possível mas sabemos que o trabalho deve ser nosso porque não há soluções universais,. Há coisas que, para nós, têm sido fundamentais para navegar nestes dias: lembrar-lhe que ele é uma criança inteligente, curiosa, educada e muito amada e que nada disso se apaga com as palavras de outras pessoas; explicar-lhe que muitas destas agressões são o resultado de falta de auto-estima ou sentimento de inferioridade; mostrar-lhe que ele se pode e deve defender sempre que o queira e consiga fazer, em igual medida (o que significa responder na mesma moeda se a agressão alguma vez for física); tentar evitar a companhia destas crianças na medida do possível e sem nunca se isolar em momento algum; e, para mim talvez a coisa mais importante de todas, nunca mas NUNCA se calar face a uma injustiça, mesmo que seja outra pessoa a sofrê-la. É importante que ele (e os nossos outros filhos, claro) possa compreender que todos temos momentos difíceis, todos temos as nossas inseguranças e fraquezas mas que NADA disso justifica agredir (fisica ou verbalmente) outra pessoa.

Bem sei que o bullying não é de agora nem sequer vai acabar. Também se costuma dizer que as crianças são crueis e eu até aceito que possam algumas vezes dizer o que pensam sem compreender as consequências das suas palavras. O que não posso aceitar é ficar de braços cruzados, culpar os meus filhos apenas por existirem ou por não corresponderem à ideia que os outros têm de uma criança normal, desculpar os agressores por alguma falta de acompanhamento em casa ou no âmbito escolar. Não mudaria de ideias se fossem os nossos filhos os agressores: exijo deles exactamente o mesmo nível de empatia, de tolerância e respeito pelas regras de vida em sociedade que reclamo dos outros. Infelizmente, vejo no mundo dos adultos as mesmas falhas: a falta de respeito pelos outros, um individualismo cego que se manifesta nas coisas mais mundanas, uma triste incapacidade de sentirem empatia pelas pessoas que mais sofrem ou que estão mais desfavorecidas. E por isso sei que o problema é também nosso, dos adultos. Mas tenho esperança que, educando os nossos filhos para serem pessoas melhores, fazendo um esforço para que eles compreendam o papel de cada um no mundo, talvez possamos trazer para esta conversa uma centelha (mínima) de esperança. Neste momento, mais nada sei que fazer.

2021 > 2020

Quase consigo ouvir o suspiro colectivo, mundial, universal que o fim deste ano traz. Há muitas pessoas para quem este ano foi terrível, há outras pessoas que tiveram quase o melhor ano de quem têm memória, há quem acabe o ano a sentir-se assim-assim.

Nós fomos (felizmente) poupados ao sofrimento individual: não perdemos o nosso emprego, não ficámos doentes nem ninguém da nossa família ficou doente e as pessoas que conhecemos e adoeceram não desenvolveram as piores formas da doença. Continuamos a ter um tecto sobre a nossa cabeça, comida na mesa, mantivemo-nos em contacto com família e amigos.

Mas eu não pude escapar ao sofrimento colectivo. Chorei no primeiro dia em que passei pelas escolas fechadas, chorei a ver as cidades vazias e os hospitais a transbordar, chorei a ver o desespero de quem ainda não sabia lidar com este vírus, chorei com a ideia de acesso limitado aos supermercados. Chorei a ver os números a aumentarem exponencialmente, chorei nas noites consecutivas em que só existiam notícias sobre o vírus. Foi doloroso e ainda é doloroso assistir à vida nos países que decidiram ignorar o perigo desta pandemia.

Hoje fui ler as minhas resoluções para 2020 e ri-me, claro está. Uma delas era “Sair mais de casa”, o que só por si é hilariante. Outras implicavam um espaço mental que não existiu durante estes últimos dez meses.

Numa das últimas chamadas de trabalho em que participei, uma colega disse que 2021 não poderia ser pior do que este ano. E eu ri-me e disse-lhe que todos sabemos que, depois de tudo o que aconteceu este ano, 2021 pode ainda ser muito pior. A caixa de Pandora abriu-se este ano e agora vai ser difícil enfiar tudo novamente lá dentro.

Apesar de não querer fazer nenhuma resolução e de saber que os nossos planos não valem nada face a um acontecimento como este, só quero fazer promessas a mim mesma: acreditar sempre na ciência; não confiar cegamente na humanidade; procurar sempre mais e melhor informação; deixar a vida rolar, sem planos, sem pressas e sem grandes decepções; celebrar as pequenas vitórias e partilhar os momentos de tristeza.

Saúde e liberdade de movimentos, é o que desejo para todos. E que nos possamos (re)ver muito, muito em breve! Feliz Ano Novo!

2020, um balanço: lidar com um mundo em colapso

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está: quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Hoje quero falar sobre coisas que me fizeram bem, coisas que me ajudaram a relaxar e a esquecer-me do que se passava lá fora (mesmo quando estavam relacionadas com esses mesmos acontecimentos). Quero falar das coisas que contrabalançaram as cidades vazias, os tanques em Bergamo a transportar os caixões para os quais já não havia lugar, as pessoas a morrerem subitamente nas ruas de Wuhan, as pessoas a quem falta companhia, trabalho e dinheiro, as pessoas que morreram sozinhas num quarto de hospital, as pessoas que, meses depois de terem sido dadas como curadas, continuam a sofrer. Quero falar das coisas que me ajudaram a manter a esperança, a usar bem o meu tempo e a ter (muito de vez em quando) esperança que tudo acabaria bem.

Exercício físico

No momento em que vos escrevo, levo 42 semanas consecutivas a atingir o meu objectivo semanal de exercício físico, num total de 2,021 minutos de exercício (ou seja, mais de 36 horas) . Sei isto porque uso uma aplicação que mantém estes registos, o que funciona como uma óptima fonte de motivação. Na maior parte das semanas, isto implicou muita disciplina e rigor: levantar-me três vezes por semana às 5:30 da manhã para fazer exercício e poder despachar-me a mim e depois aos miúdos antes da escola e do trabalho; foi arranjar maneira de enfiar uma sessão fora do plano quando, por algum motivo, não consegui fazer nos dias que tinha planificado; muitas vezes, foi fazer exercício e tentar manter a sanidade mental com três filhos a brigarem mesmo ao lado.

Perdi peso e bastante volume, mas ainda vou longe dos meus objectivos iniciais. Mas o melhor foi sentir que me superei em todas estas semanas, que fui mais forte do que a minha cabeça e do que aqueles dias em me custou tanto sair da cama. E é sentir-me mais saudável e mais capaz, menos cansada ao final do dia, mais forte.

Podcasts

Parece parvo, eu sei. Mas umas das coisas que eu decidi fazer em 2020, mesmo antes de começar todo o shit show que foi este ano, foi aprender mais. Primeiro, porque já há um tempo que sentia que não estava habituada a ouvir posições contrárias às minhas; e segundo, porque decidi rentabilizar o meu tempo com coisas úteis. Vivermos numa bolha constituída apenas de pessoas e opiniões semelhantes às nossas é talvez um dos maiores perigos que corremos hoje em dia e eu decidi fazer o mínimo possível para mudar isso. Os podcasts que mais ouvi este ano, excluindo alguns que foram só séries únicas ou sobre um tema em específico, foram (sem ordem de preferência):


The New Abnormal: um podcast dos jornalistas Rick Wilson e Molly Jong-Fast sobre o que se vai passando nos Estados Unidos. Rick é um republicano e um dos fundadores do The Lincoln Project (uma plataforma de republicanos contra Trump e que tiveram um papel fundamental na sua derrota nestas eleições) e Molly é uma comentadora da ala esquerda - juntos, comentam os acontecimentos políticos americanos com muita acidez e humor;

Conan O’Brien Needs a Friend: ele não precisa de apresentação e os convidados dele também não. O ponto de partida é sempre o mesmo: o convidado é alguém que Conan admira. Adorei os episódios com a Michelle Obama, Jim Carrey, Jeff Goldblum ou Wanda Sykes mas são todos mesmo bons!

Eixo do Mal: a versão podcast do programa da Sic Notícias. Sou fã do Luís Pedro Nunes, gosto do tom um pouco amargo da Clara Ferreira Alves, admito as posições do Daniel Oliveira e simpatizo com o portista Pedro Marques Lopes.

O Fred e a Inês Falam de Coisas: já aqui falei deste podcast e continua a ser um dos meus preferidos. O Fred e a Inês são dois amigos que vivem no Porto e que se juntam para conversar sobre assuntos importantes, fracturantes e divertidos. Adoro o sentido de humor deles e, apesar da nosa diferença de idades, sinto que me podia sentar àquela mesa com os meus amigos.

Governo Sombra: a versão podcast de outro programa da Sic Notícias. Sou muito fã do Ricardo Araújo Pereira (nunca vi um comunista tão giro e tão divertido…), gosto muito do Pedro Mexia desde o tempo do Estado Civil (saudades da blogosfera dos anos ‘00) e simpatizo moderamente com o João Miguel Tavares (cada vez menos mas enfim) por ser meu conterrâneo.

Hidden Brain: um podcast de Shankar Vedantan que explora a psicologia do comportamente humano e que traz especialistas que falam de coisas como a forma como exercemos influência sobre os outros, os resultados do confinamento e teletrabalho no nosso retorno ao escritório ou no poder da inveja como um factor de motivação.

This is Important: um podcast excelente para quem acompanhava a série Workaholics. É um podcast sobre as coisas mais parvas de que há memória (do género como é que vocês se sentam para fazer cocó…) e não recomendado a pessoas que se levam demasiado a sério.

Sem moderação: uma parceria entre a TSF e o Canal Q. Já aqui falei do Daniel Oliveira mas gosto de ouviir este podcast especialmente pelas intervenções do Francisco Mendes da Silva e do José Eduardo Martins, exactamente por se situarem num quadrante político que é praticamente o oposto ao meu. Muito interessante para questionar a minhas próprias posições.

PBX: um podcast que junta o culto e moderado Pedro Mexia com a doce e sonhadora Inês Maria Meneses em conversas sobre cinema, música e literatura. Uma maravilha para quem quer saber mais sobre o que se passa nas artes e letras, sempre com belos interlúdios musicais.

Irritações: a versão podcast de um programa da Sic Radical, com o Luís Pedro Nunes (de quem já me declarei fã), o sportinguista ferrenho José de Pina, a clássica Carla Quevedo e a divertida Joana Marques. Em cada episódio, cada um traz duas das coisas que os irritaram durante a semana e é o conteúdo de sonho para quem adora queixar-se! Fico sempre a pensar que irritação levaria semana a semana!

WTF: o podcast de Marc Maron é, para mim, o rei dos podcasts. Em cada episódio, ele entrevista alguém famoso (a entrevista dele ao Barack Obama é legendária!) e fala sobre a sua própria vida, sobre política e relações, sobre os seus gatos e a sua longa viagem em direcção à auto-compreensão e melhoria. É outro tipo de que gostaria de ser amiga!

Agora, agora e mais agora: descobri este podcast do historiador Rui Tavares já um pouco tarde mas não posso deixar de recomendar. São episódios que se passam algures em mil anos de história europeia, alguns mesmo antes do nascimento de Jesus Cristo e cada episódio está tão cheio de curiosidades e factos históricos que é impossível não ouvir e ficar boquiaberta.

Trabalho

Eu sei que um bocado parvo mas o trabalho também ajudou a passar o ano. No princípio do confinamento, passei umas nove semanas em casa de licença a tomar conta dos três e a tentar garantir que cumpriam os deveres escolares, ao mesmo tempo que preparava quantidades industriais de lanches e snacks. Foi uma opção nossa, da nossa família e não uma imposição. Tentei o meu melhor para os distrair e para os manter afastados do clima de depressão geral que se sentia assim que ligávamos a televisão.

Mas não posso mentir e dizer que não fiquei contente quando as escolas voltaram a abrir e eu pude dedicar-me a tempo inteiro ao trabalho, mesmo que o fizesse a partir de casa e sem os meus dois fiéis monitores gigantes. Poder trabalhar equivalia, para mim, a recuperar uma parte das rotinas e da normalidade, ao mesmo tempo em que me devolvia um propósito e um desafio constante.

A meio do confinamento, recebemos a notícia de que a nossa empresa tinha sido comprada por uma empresa maior. Esta notícia, apesar de ser um sinal de que este mercado não estava estagnado e de que novos desafios estavam para vir, também assustou toda a gente porque já sabemos que fusão de duas empresas = despedimentos para poupar dinheiro e consolidar posições e departamentos. No Verão. o novo CEO comunicou-nos numa videoconferência que seria necessário despedir 10% da força de trabalho e eu chorei. Foi uma chapada tão inesperada que nem me ocorria dizer nada, só chorar.

Não fui despedida. E, felizmente, nenhum dos meus colegas mais próximos foi despedido. Aconteceu, pelo contrário, vermo-nos inundados de ainda mais trabalho. de colaborações e pedidos. E todo este ano em teletrabalho permitiu que me organizasse à minha maneira, cumprindo o número de horas necessário mas distribuindo-as segundo a minha conveniência e permitindo um maior equilíbrio entre a minha vida pessoal e a minha vida profissional. Acabei o ano a agradecer à minha chefe com uma garrafa de Conventual tinto toda a confiança que depositou em mim e a liberdade de me organizar autonomamente durante estes meses.

Foi um bom ano, all things considered.

2020, um balanço: saudades vezes mil

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está: quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Saudades da família, dos amigos e das festas e feiras de Verão

É mais do que evidente: depois das pessoas que perderam a vida, das pessoas que continuam doentes ou das pessoas que perderam o trabalho, a coisa mais horrível desta pandemia é a nossa falta de liberdade de movimentos. Claro que chorei por razões muito diferentes durante estes nove meses mas lembro-me de, no auge do primeiro confinamento, chorar por duas coisas: ver as cidades totalmente vazias e não meter pé num supermercado durante mais de dois meses (e sim, eu sei que são problemas de primeiro mundo…).

Questões logísticas obrigaram-nos a ficar no Luxemburgo no Natal de 2019: o Mário trabalhava e não tínhamos tempo suficiente para as viagens. Portanto, a última vez que tínhamos visto a nossa família tinha sido no Verão de 2019. Quando o confinamento chegou ao Luxemburgo, acho que dificilmente alguém conseguiria imaginar a sua duração ou que as fronteiras iriam encerrar por toda a Europa mas lentamente fomos tendo essa dolorosa consciência.

Perdemos todas as nossas reservas para as férias da Páscoa mas nessa altura ainda mantínhamos a esperança de podermos ter qualquer coisa parecida com férias de Verão. Começámos a sair lentamente do confinamento no dia 25 de Maio, quando as escolas reabriram aqui. Tudo cheio de regras, de precauções, de divisões mas tudo para fazer crianças e pais sentirem-se minimamente seguros. Mas tudo em serviços mínimos: o desporto e actividades extra-curriculares estavam cancelados, as piscinas estavam fechadas, os grandes ajuntamentos de pessoas estavam (e continuam a estar) proibidos e por isso salsichas e copos de champanhe estavam fora do programa.

Eu sou uma pessoa-anti-social mas as feiras e festas de Verão aqui são tudo. Os cheiros são quase sempre os mesmos (carne grelhada, principalmente), as atracções idem aspas, só o sítio vai variando. Os miúdos não pescaram patos nem andaram no carrossel, não comemos salsichas nem eu bebi um copo de crémant, não vimos as mesmas barracas pela enésima vez. E a falta desses momentos familiares, depois de oito anos, custou. Preciso dizer que sempre pudemos sair de casa, portanto o confinamento nunca foi terrivelmente doloroso. Mas foi triste vermos cancelados todos os acontecimentos ao ar livre que sempre temos no calendário.

E depois houve a questão das nossas pessoas. Sem ir a Portugal desde Julho de 2019, passámos um ano longe da nossa família e amigos. Eu sei que me queixo de barriga cheia: há emigrantes que passam anos sem ir a Portugal. Mas nós habituámo-nos a ir pelo menos duas vezes por ano e 2020 não parecia estar de acordo com esses planos. A parte pior, sinceramente, é saber que os meus pais/irmã/avó/família do Mário não podem estar com os miúdos e os miúdos não podem ser mimados pelos avós/tios nem brincarem com os primos. É claro que tenho saudades dos nossos amigos mas sou adulta, sei lidar.

Por isso, quando finalmente fomos a Portugal (ainda a ideia de uma segunda vaga não passava disso mesmo e Portalegre tinha registado para aí um caso), limitámos as nossas visitas e os nossos contactos no geral. Mal contactámos amigos com medo da reacção ou por não sabermos se o momento era o ideal para nos misturarmos. Nós vínhamos de fora do país, acredito que é estranho para alguém que vive normalmente em Portugal receber (praticamente) estrangeiros em casa. Os únicos encontros que tivemos foram ao ar livre, em sítios públicos e com todos os cuidados que a situaçáo pedia e ainda pede mas souberam manifestamente a muito pouco.

Hoje, agradeço em silêncio a oportunidade de ter ido a Portugal no Verão porque chegou a altura do Natal e nós vamos ficar mais uma vez encalhados por terras luxemburguesas. A situação epidemiológica é grave no distrito de Portalegre e aqui não está muito melhor. Não quisemos arriscar ficarmos confinados num qualquer recolher obrigatório, não quisemos (potencialmente) transportar o vírus até à nossa família nem quisemos regressar com o virús para a nossa comunidade. E ontem, out of the blue, soubemos que um colega do Vicente foi diagnosticado positivo, o que significa teste para ele + auto-isolamento para todos nós.

Resignada, aceito as limitações, cumpro â regra as recomendaçóes das autoridades e protejo-nos ao mesmo tempo que protegemos os outros. Num país tão pequeno e com um número tão alto de casos, começa a ser muito real a sensação de que os próximos vamos ser nós. Esperando que isso não passe duma sensação infundada, aceito também as saudades, imaginando (como todos nós) quando raio vamos poder regressar a uma vida normal.

2020, um balanço: uma desilusão

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Um podcast que nunca aconteceu

Em Dezembro de 2019, veio-me uma ideia à cabeça: que tal começar um podcast? Há uns anos que ouço alguns podcasts regularmente, de temas variados, em línguas diferentes e a ideia de poder conversar com outras pessoas sempre me pareceu interessante. E depois, juntei a isso a ideia de que não tinha ainda ouvido nenhum podcast sobre parentalidade em Português. E cheguei à minha ideia final: um podcast em que pais e mães conversavam sobre como era ter filhos.

Queria fazer uma coisa bonita e por isso pedi a amigos (olá J. e olá M.!) para me ajudarem com a música e o grafismo e tudo fazia sentido. Tinha um tema, tinha separadores, tinha uma imagem e só me faltava o conteúdo.

Fiz um ficheiro todos bonito, com a lista das pessoas com quem gostava de conversar, possíveis temas, as perguntas condutoras dos episódios, o calendário das entrevistas. E cheguei mesmo a gravar duas delas (olá A. e olá C.) , mães que emanam inspiração por todos os lados. Perguntei mesmo a outras pessoas se estariam interessadas em participar para começar a perceber como me podia organizar.

Mas corria o ano de 2020, como sabem. E havia uma pandemia a acontecer. Eu estava a dividir o meu tempo entre tomar conta dos miúdos a 100% e a tentar trabalhar a partir de casa, mantendo o olho neles simultaneamente. Percebi rapidamente que não percebo nada de edição de som (nem video, vá edição no geral), sobrava-me muito pouco tempo para aprender sozinha e não queria publicar coisas sem qualidade. E depois ainda comecei a lutar com aquele síndrome do impostor: quem é que eu pensava que era para lançar um podcast sobre parentalidade?

Falhei e a vergonha fez-me enterrar esta ideia bem fundo na minha cabeça. Senti-me mal por não ser mais inteligente e ter começado a dominar as ferramentas necessárias rapidamente; senti-me mal porque mal conseguia arranjar tempo para gravar sem que os miúdos me entrassem escritório adentro aos gritos; senti-me mal por achar que não tinha nada de interessante a adicionar ao mundo, mesmo que os meus convidados sim; senti-me mal porque se calhar o tema era um bocado redutor e eu queria era falar com pessoas interessantes sobre as vidas delas, não só sobre a maneira como vivem a parentalidade.

Um ano depois, aqui estou: a fazer uma catarse pública, cheia de remorsos e de vergonha da minha inaptidão e falta de insistência mas também hiper consciente das minhas limitações pessoais e das limitações impostas pelo raio da pandemia. E no fundo acho que não desisti totalmente mas, depois do shitshow que foi este ano, recuso-me a fazer prognósticos porque esses, toda a gente sabe, são melhores no fim do jogo.

2020, um balanço: música para esquecer o mundo

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Canções para corações doridos num ano de pandemia

O meu ano cultural, chamemos-lhe assim, foi dominado por mulheres e a música não foi excepção. Dois dos meus álbuns preferidos deste ano foram escritos e cantados por duas mulheres que aparentemente têm pouco em comum mas que me fizeram cantar, sorrir e chorar.

Já gostava da Phoebe Bridgers há um bocadinho e nunca fui muito à bola com a Taylor Swift. Uma vinha daquela cena indie que vocês respeita, outra da pop mais mainstream que se faz por aí. Mas aterraram as duas na minha vida e neste ano para o qual já me faltam adjectivos.

Foram os álbuns que mais ouvi este ano e parece-me que vieram para ficar.

Ouvi muito esta música da Taylor Swift que fala sobre aquelas relações em que há uma pessoa totalmente investida na relação e há outra que vai brincado com os seus sentimentos, ao sabor das suas vontades. Aquela sensação de nos sentirmos como um velho casaco e vem a outra pessoa que nos diz que somos o seu casaco preferido, para depois nos esquecer em cima de uma cama qualquer. Não é uma metáfora muito bonita mas a maneira como a música está escrita, todas as pequenas memórias que vão ficando, que permanecem mesmo quando o fumo se dissipa, isto é universal e fala a qualquer coração, em qualquer geração.

E, do outro lado, quando, aos 03m50s, a Phoebe Bridgers canta “…the end is near…”, não consigo conter as lágrimas. Porque ou a vacina vem para nos salvar lentamente e podemos começar a sonhar com o fim deste pesadelo; ou o fim do mundo como o conhecemos está a acontecer agora, sem nos darmos conta. E tanto o alívio como o desespero estão contidos naquele coro que vem a seguir.

2020, um balanço: uma obsessão

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

As eleições americanas

Créditos: Bloomberg (vista aqui)

É um bocado estranho, eu sei, mas eu estive e ainda estou obcecada pelas eleições presidencias nos Estados Unidos. Sinto-me estranha porque obviamente não sou cidadã nem sequer residente no país mas acompanho com muito entusiasmo e fervor tudo o que se tem passado desde o início da campanha eleitoral.

O meu interesse era apenas um: presenciar o momento em que Donald Trump perdia a presidência. Não me importava muito contra quem (confesso que o meu coração de esquerda torcia pelo Bernie Sanders, ao mesmo tempo que compreendia que ele é demasiado radical para ter qualquer hipótese nos Estados Unidos) mas hoje, mais de um mês depois do dia das eleições, estou até contente que tenha sido Joe Biden a ganhar.

Estas eleições presidenciais eram apenas sobre uma coisa: decência. Para mim, não estava em causa um programa partidário, a competência dos candidatos mas única e exclusivamente a troca de um presidente amoral, corrupto e sem um pingo de humanidade por uma pessoa “normal”. Uma pessoa “normal” também tem defeitos, não é isenta de escrutínio, não vai de repente resolver os problemas raciais, sociais ou económicos de um país inteiro mas vai, pelo menos, liderar pelo exemplo em busca da melhoria das condições de vida de todos os cidadãos.

Essa pessoa “normal” não vai demonizar imigrantes nem nacionalidades inteiras, não vai incitar ao ódio racial, não vai promover linchamentos nem actos de terrorismo. Uma pessoa “normal” rodeia-se de especialistas nas mais diferentes matérias, com provas dadas e tenta governar o melhor que sabe e que o conhecimento de um gabinete permite. Uma pessoa “normal” compromete-se a ajudar as empresas que tanto têm sofrido durante este mas também com os seus cidadãos (queiram term votado nessa pessoa ou não) que estão a sofrer em massa com o desemprego, a fome a a falta de acesso a cuidados médicos generalizados. Uma pessoa “normal” passa o seu tempo a governar, a informar-se, a tomar decisões e não a gritar inanidades e mentiras no Twitter.

Uma pessoa “normal” não coloca a sua família em postos para os quais essa família não tem qualquer qualificação e não povoa os seus gabinetes com pessoas desqualificadas apenas porque elas lhe servirão os seu propósito final: tratar um país inteiro como uma das suas empresas e enriquecer a todo o custo. Uma pessoa “normal” compreende qual é o seu papel e defende que o governo é totalmente of the people, by the people, for the people.

No dia 3 de Novembro, ciente de que os resultados não iriam ser conhecidos ness dia (e provavelmente Trump estaria à frente, já que os votos presenciais são contados primeiro), não liguei muito ao processo eleitoral. Sabia que as contagens iam demorar, era natural se pensarmos também nas quantidades de votos enviados pelo correio antes do dia das eleições. E no dia 7 aconteceu: amigos enviaram mensagem a confirmar a vitória de Biden (ainda apenas nas projecções) e eu senti imediamente um alívio e uma grande alegria. Emocionei-me a ver as pessoas que festejavam nas ruas, comovi-me com a ideia de que a democracia tinha cumprido o seu papel e as pessoas tinham finalmente decidido eleger a pessoa “normal”. Sabia que ainda não eram os resultados finais mas estava longe de imaginar o que iria acontecer até hoje, mais de um mês depois e a escassos 3 dias do colégio de eleitores depositar finalmente os votos de cada estado.

Trump tem alimentado a ideia que o resultado destas eleições foi falsificado sem nunca apresentar nenhuma prova. A sua equipa jurídica (que já mudou várias vezes e que, numa espécie de castigo bíblico,mestá agora em grande parte infectada com COVID) já perdeu 56 processos em tribunal, todos com a mesma justificação: não existe nenhuma prova de que tenha havido fraude. Nem mesmo os juízes que Trumpo nomeou para o Supremo Tribunal aceitaram sequer ouvir um dos casos, justificando-se na mesma maneira. Naquele que muitos pensam ser a última tentiva de golpe, vários governantes de pelo menos 17 estados pediram ontem para que o Supremo Tribunal elimine ou desclassifique milhões de votos legalmente válidos e inverta o resultado das eleições. Está por ouvir a decisão do tribunal mas muitos pensam que é apenas uma tentativa de alguns governantes republicanos se mostrarem leais a Trump, que no fundo destruiu o Partido Republicano para o transformar num apenas num culto de uma personalidade vil e nojenta.

(Se chegaram até aqui, parabéns e obrigada pela paciência! Mas podem mesmo ver como isto me entusiasma.)

Eu não sou, no geral, uma pessoa de convicções inalteráveis: compreendo que as coisas podem mudar, as pessoas podem errar e corrigir a sua trajectória e não ponho a mão no fogo por ninguém. Por isso, não acho que Biden seja o salvador da pátria e que, com ele, todos os profundos e divisivos problemas dos Estados Unidos irão desaparecer. Mas o estado das coisas é tal que ele parece ser uma pessoa decente e, neste momento, decência é tudo aquilo que parecem precisar os Americanos. E nós todos, porque o que acontece lá, tem o condão de nos influenciar também. E por isso, desejo aos Americanos o mesmo que desejo para qualquer pessoa do mundo: um governo de pessoas decentes, capazes e inteligentes, que não sobrepõem os interesses económicos aos interesses dos seus cidadãos. Com defeitos, é evidente, mas com aquela capacidade de se pôr na pele dos outros. E o dia 20 de Janeiro nunca mais chega!

2020, um balanço I: um ódio de estimação

Este ano, em vez de escrever um post de reflexão sobre o ano que está quase acabar, resolvi fazer toda uma série de posts, com algumas coisas que me fizeram feliz, outras que me deixaram indiferentes e ainda as que me deixaram de rastos.

Ódio de estimação

Esta é muito fácil e muito actual: o meu ódio de estimação este ano são os negacionistas.

Créditos: Mario Tama para Getty Images (vista aqui)

Lembro-me bem do mês de Fevereiro: havia já sinais de alarme vindos da China e já se começava a ver situações insustentáveis no Norte de Itália. Dois colegas de trabalho insistiram em ir fazer ski para uma estância que ficava onde? Em Bergamo, no Norte da Itália, um dos maiores focos de infecção da primeira vaga. A maioria das pessoas achou que era uma decisão inconsciente, uma vez que as viagens já eram desaconselhadas mas eles diziam que a situação não era grave, que era tudo um exagero e que iam tomar as precauções. Resultado: foram obrigados a fazer quarentena quando regressaram e uma semana depois começou o confinamento no Luxermburgo.

Isto aconteceu numa altura em que sabíamos muito pouco sobre a doença, apesar de já nessa altura ser claro que ela ia alastrar sem restrições. Os meus colegas não avaliaram bem a situação mas compreenderam mais tarde os riscos que tinham corrido.

Muitas pessoas parecem ainda não ter compreendido, nove meses depois, que o perigo existe e é real. Desde as pessoas que simplesmente se recusam a pactuar com as medidas de higiene mais básica e acham que usar máscara é um ataque às suas liberdades, aos grupos organizados que são pródigos em espalhar informação grosseira, falsa, fabricada, às pessoas que acham que a vacina nos vai injectar transmissores e receptores 5G para que um qualquer génio do mal nos controle. Não. Há. Pachorra.

Quero dizer, antes de mais: eu não acredito cegamente em tudo o que nos dizem. Mas ouço os factos/recomendações/medidas armada de alguma racionalidade e encaro-os como a minha (modesta, se calhar insignificante) contribuição para a manutenção dos nossos padrões de saúde pública. Eu compreendo, acima de tudo, que ninguém tem a solução milagrosa para esta pandemia: nenhum governo, nenhuma instituição mundial, nenhum indivíduo sozinho. E também compreendo que a mortalidade da doença não será mais alta do que outras doenças que já conhecíamos mas uma coisa me parece evidente: todos os esforços são também dirigidos para que os sistemas de saúde não colapsem e, consequentemente, morram ainda mais pessoas sem cuidados porque as urgências e cuidados intensivos estão a rebentar pelas costuras.

Acho que não se trata de aceitar tudo o que nos pedem sem nenhum espírito crítico mas sim de pesar, a muito custo, os prós e os contras de cada decisão que tem vindo a ser tomada. Trata-se de confiar nos nossos governantes e cientistas, sabendo obviamente que vão existir erros de julgamento e estratégias que vão falhar. E aceitar que tudo pode ter sido em vão mas isso só vamos poder ver no futuro, quando a distância for suficiente para finalmente olharmos para trás e estudarmos os efeitos dessas decisões. Até lá, estou do lado da ciência.

Há muita gente sem qualquer tipo de formação médica (e até mesmo sem qualquer tipo de formação) que diz que nunca tomará a vacina porque é impossível ter uma vacina que funcione em tão curto espaço de tempo. Mas esquecem-se que este vírus parou o mundo e alterou brutalmente a vida como a conhecíamos e por isso todos os esforços, todo o financiamento, todo o capital humano foram canalizados para encontrar uma solução assim que possível. E há ainda pessoas que acham que a vacina servirá para servir uma conspiração mundial (aliás, inter-planetária se acreditarmos nas teorias do Comando Intergaláctico - digam isto sem se rirem, se forem capazes!) que nos controlará a todos. Deve ser muito cansativo viver assim, é só o que me ocorre dizer.

É normal termos medo. É normal sentirmo-nos perdidos e não sabermos em quem confiar, afinal nenhum de nós viveu uma situação assim. É completamente legítimo o receio de uma vacina acabada de criar e da qual se conhece ainda muito pouco. É normal discordar de algumas medidas tomadas até agora, especialmente quando os factos demonstram que foram ineficazes. O que não é normal é viver a sonhar com uma conspiração que se esconde em todo o lado e cujo os objectivos são apenas diminuir e controlar a população da Terra. Negacionistas, este ano foi realmente vosso mas caramba, vocês cansam-me que sa farta.


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Fiz quarenta e um anos. Doeu menos que no ano passado, atravessar esta barreira que aos vinte parece longínqua mas, vai-se a ver, e aqui estou eu, quarentona. Queria escrever um ensaio profundo e bonito sobre este tempo mas faltam-me as palavras, a inspiração, o tempo e por isso deixo só notas soltas sobre os últimos tempos e já com quarenta e um anos.

Há duas semanas, tive um acidente de carro. Estava a regressar a casa e um senhor ignorou um sinal de cedência de passagem e enfiou-se directamente na minha porta. Devia circular a 30km por hora mas, como circulava muito acima disso, o meu carro ficou atravessado na estrada, porta completamente escangalhada, vidros e espelhos partidos. Consegui perceber segundos antes que ia ter um acidente e ainda tentei desviar-me mas não fui a tempo. A minha primeira reacção foi de raiva: primeiro, ainda dentro do carro e depois fora do carro, a tentar processar o que tinha acabado de acontecer, Raiva porque não ia poder apanhar os miúdos nos tempos livres (e o Mário estava longe), raiva porque era o carro de serviço e eu não sabia o que fazer, raiva porque ele simplesmente estava distraído a uma velocidade muito acima da permitida. Tive de esperar mais de duas horas para que tudo se resolvesse (a polícia a ajudar-me, uma amiga que ficou com os miúdos, o Mário entretanto a chegar, declaração preenchida, a limpeza da estrada sem demoras, o reboque que nunca mais chegava). No final, depois de tudo resolvido, voltei para casa a pé com todos os meus pertences, mergulhada numa tristeza que não sabia explicar e num desejo agoniante que o dia acabasse finalmente. Não fiquei ferida com gravidade mas preciso de fisioterapia para que os músculos das costas recuperem do choque. Fiquei com um bocadinho de medo de cruzamentos em que tenho a prioridade mas não deixei nunca de conduzir.

No Sábado, chorei com o resultado das eleições norte americanas. Eu sei que muita gente acha que é absurdo acompanhar e mesmo sofrer com eleições que nem sequer são no nosso país mas senti desde 2016 que o que está em jogo é a decência, a luta por uma sociedade mais justa, o mal no seu estado mais puro e disseminado. Ter como presidente um homem que se comporta como uma criança de três anos, sem qualquer experiência ou aptidão política, rodeado de pessoas igualmente inaptas e com planos que em pouco beneficiavam o cidadão comum, que demonstrou desde o primeiro dia que ia fazer implodir as instituições estatais através do seu nepotismo, racismo e negócios em proveito próprio - era tudo mau demais para ser verdade. Não sou cidadã norte-americana mas não posso evitar pensar que ali está um exemplo, uma legitimização de tudo o quanto está mal neste mundo e era vital derrotá-lo inequivocamente. Caíram-me lágrimas de alívio e de alegria, mesmo sabendo que Biden não é um santo e nem sequer vai ser a salvação de um país profundamente dividido nas suas convicções. Mas o primeiro passo era restaurar a presidência com um homem digno, calmo, confiante, conhecedor dos corredores da política, isento tanto quanto possível, sensível às questões sociais, raciais e identitárias, defensor da ciência - o alívio foi, pois, gigante. Mas tudo está longe de estar resolvido e a minha ansiedade voltou assim que percebi que há quem defenda o indefensável e se recuse a aceitar a realidade. Veremos qual vai ser o rasto de destruição que vai deixar.

Percebi há pouco tempo que me tinha enganado com algumas pessoas. Quer dizer, eu sabia que elas eram muito diferentes de mim mas acho que quis sempre ver as partes boas e esquecer as partes más. Chegou o momento de cortar esse mal pela raíz e não admitir toxicidade perto de mim e das pessoas de quem gosto.

O tempo está escuro e chuvoso e há dois dias que o nevoeiro não levanta. É nestes momentos que remexo na minha memória à procura dos dias de Verão e que faço a contagem para o dia mais curto do ano. Aproximamo-nos a passos largos e depois é sempre a somar minutos de luz até ao Verão.

Ultimamente, o mundo tem sido um pouco demais para mim. É como se de repente houvesse tanto mal, tanta miséria e sofrimento, tanta catástrofe e tanto desastre natural que não consigo aguentar. Sinto que o mundo está numa bifurcação entre voltar a um passado de repressão, ausência de liberdade e de direitos e um mundo que tem tudo para ser melhor e mais justo para todos, caso os nossos líderes nos conduzam nesse mesmo sentido e todos nós façamos a nossa parte. Perdoem-me a construção simplista mas sinto que os bons estão a perder terreno e que os maus estão já ali na esquina, à espera do momento certo para tomar conta de tudo. Não está fácil para pessoas como eu, que choram por tudo e por nada.

E o Natal está quase aí e começa a ser cada vez mais evidente que não vamos passá-lo com a nossa família. No estado em que estão as coisas, não vamos a lado nenhum mas não consigo evitar sentir uma pontinha de esperança de que tudo vá melhorar e que esta segunda vaga comece a ficar finalmente sob controlo. Até lá, acho que vou começar a procurar o bacalhau e esperar conseguir couves para a ceia. Valham-nos as novas tecnologias que nos deixam estar com os nossos, mesmo que não lhes possamos tocar ou pedir colo.

Estou farta de pessoas, especialmente em caixas de comentários. Estou farta de negacionistas, que acham que tudo isto não passa de um complot mundial para alguém dominar o mundo e que esse domínio vai chegar através de um chip contido numa vacina. Estou cansada das pessoas que criticam tudo o que o governo decide, como se algum governo tivesse um plano para lidar com uma situação deste género e não estivesse a navegar à vista. Estou cansada dos que querem confinamentos e dos que defendem a Suécia e dos que têm opiniões sobre o uso da máscara. Sinto uma terrível falta de moderação, de racionalidade, de calma e de respeito pelas autoridades, mesmo que elas se contradigam e que cometam erros. Não existia nenhum manual para lidar com pandemias e talvez nunca vá haver um. Mas a única coisa que eu posso fazer é confiar na ciência e na responsabilidade dos outros, ao mesmo tempo que faço a minha parte para não piorar as coisas. Sem gritar, sem espalhar mentiras e teorias da conspiração e entendendo que ainda teremos muitos erros pela frente. Agora, mais pessoas é que não.

E pronto, aos quarenta e um anos tenho a cabeça a ferver. Sempre pendurada por um fio, tentando moderar o consumo de notícias e ignorar a loucura que vai contaminando tudo, concentrado-me no nosso pequeno círculo familiar e nas coisas que me fazem sentir bem. Afinal, como sempre, são eles que importam.