Quando nada nos faria prever...

Ontem à noite, num dos mercados de Natal da capital, morreu uma criança com dois anos. Perto de um ringue de patinagem, uma estátua de gelo encomendada para o evento aparentemente derreteu e um bloco de gelo com algumas centenas de quilos caiu em cima da criança. Fim da história.

Não que alguém se dê ao trabalho de me perguntar alguma coisa mas se alguém me perguntasse porque não acredito em Deus, a minha resposta seriam estas histórias. Estes acontecimentos trágicos e absurdos, a rasgarem a normalidade em mil pedaços, sem respeito pela ordem natural das coisas. Aqueles momentos em que o som apenas nos chega abafado e ganhamos a consciência que a nossa vida acabou de mudar, antes mesmo de um segundo ter passado. Aquela dor que às vezes imaginamos (e se ele me tivesse largado a mão e corrido para a estrada? E se o carro não tivesse travado? E se não tivéssemos dado pela falta dela naquele minuto exacto? E se ele se debruçasse demasiado contra a nossa vontade?) mas que não podemos nunca prever nem aceitar, racionalmente, como uma possibilidade.

Tremo, só de pensar. Ninguém merece, ninguém imagina, ninguém antecipa. Os perigos à nossa volta multiplicam-se mas não há como viver sempre a pensar numa desgraça. Espanto-me muitas vezes com a nossa fragilidade e com a constatação de que a morte se esconde onde menos se espera e quando menos se espera. Vivemos primeiro agarrados à esperança de que nunca vamos morrer, depois abraçados à ideia de que existe realmente uma ordem natural e os filhos hão-de ir depois dos pais. Escapamos a guerras, à fome e à doença, vivemos em paz e abundância para um dia, imediatamente antes de lhe calçarmos uns patins ou antes de lhe comprarmos uma salsicha, nos morrer um bebé. Assim, sem mais nem menos.

Lamento o meu último post. Lamento queixar-me assim porque, no final de contas, os meus filhos estão vivos e eu não preciso acordar sem vontade de viver. Lamento não agradecer mais a dádiva que é ralhar-lhes, dar-lhes banho enquanto eles gritam, enfiá-los na cama quando não querem jantar. Lamento não conseguir muitas vezes ver além da espuma dos dias e apreciar a vida que temos. E, para não me moer com remorsos, prometo relativizar mais, perdoar mais, aceitar mais, deixar os ses para depois.