Criar com as nossas mãos
O tricot entrou na minha vida vai para dois anos. Na realidade, entrou antes do Augusto nascer, altura em que decidi que ia tricotar um cobertor amarelo para o bebé que ainda aí vinha. Só que o Augusto tinha outros planos e resolveu chegar com cinco semanas de antecedência. O cobertor ficou por fazer.
Quando voltei a sentir-me uma pessoa (quero dizer, como uma pessoa que não tem um bebé colado a si e a depender da sua atenção para sobreviver), resolvi pegar nas agulhas outra vez. Com a minha mãe, fui até à única loja de lãs que deve restar em Portalegre e pedi alguns conselhos ao senhor que nos atendeu. Trouxe para casa um novelo de Rosário (uma marca portuguesa) e agulhas circulares, as quais o senhor jurava serem preferidas por toda a gente. Ainda tentei aprender o básico com a minha mãe e avó mas o tempo não chegou e, acabadas as férias, regressei ao Luxemburgo.
Ainda não tinha desistido. Estava empenhada em aprender a fazer alguma coisa com as minhas próprias mãos e procurei ajuda aqui perto. Descobri um projecto que liga tricotadoras (Tricotadeiras? Tricotantes?) experientes com novatas como eu e que as ajuda a dar os primeiros passos entre agulhas e lãs.
Encontrei-me duas vezes com a Miriam, uma americana emigrada também aqui, em dois cafés onde toda a gente é convidada a beber uma bebida quente enquanto aprende qualquer coisa de novo. No início, foi só aprender a fazer os dois pontos básicos de que é feito todo o tricot. Ela repetia uma lengalenga em inglês para eu me habituar à sequência de movimentos e garantia-me que a coisa havia de dar-se. No segundo encontro, eu já levava dúvidas e ela mostrou-me uma camisola inacabada. Prometeu-me que em menos de nada eu já estaria a tricotar em frente à televisão sem olhar para as mãos.
Não foi em menos de nada e, para ser sincera, ainda não consigo tricotar sem ver. Mas, se o modelo for básico o suficiente, consigo perfeitamente tricotar enquanto estou na sala com os miúdos. Distraio-me com muita facilidade e já perdi a conta ao número de vezes que tive de repetir um pedaço porque tive de separar uma briga ou limpar um rabo…
Depois disto, foi um não acabar de procura, investigação, muitos videos e artigos, outras redes sociais. Foi aprender o nome dos pontos em Inglês e em Francês (em Português há comparativamente muito menos recursos), descortinar abreviaturas, experimentar técnicas. Em todas as peças que fiz até agora, aprendi qualquer coisa nova (uma forma de acabar, uma combinação de pontos, como se comportam a diferentes fibras…) e, por isso, terminá-las é ainda mais gratificante e encorajador. Fiz muitas coisas para mim porque sei do que gosto e algumas coisas para os miúdos (tudo peças para o frio) mas em breve quero tricotar para outras pessoas.
O engraçado é que, pela primeira vez, tenho noção dos meus limites numa actividade manual mas, ao mesmo tempo, a consciência de que a memória muscular se desenvolve com tempo e muita paciência e de que as mãos caminham lentamente para movimentos mais perfeitos. Chegar ao tricot nesta altura da minha vida é ter tudo ainda por aprender e, simultaneamente, sentir que até eu posso inventar, desde que invista o tempo suficiente a aprender as bases.
Muita gente relaciona o tricot com terapia ou algum tipo de bem estar mental. Eu não sei se iria tão longe e não procurei aprender como forma de auto-ajuda mas antes porque neste mundo super digital em que trabalho, cheio de gráficos, tabelas e muitos números, talvez sinta falta de uma actividade mais primitiva, talvez procure recuperar a ligação à Terra, ao primordial. E então tricoto. É óbvio que tricotar uma camisola, por exemplo, demora muito tempo, especialmente se o fizerem como eu, encaixando meia hora/ uma hora depois dos miúdos irem dormir, quando eu mesma também queria estar na cama. Mas acho que tudo enriquece uma peça: as horas investidas, os sítios por onde foi tricotada, os sentimentos e estados de alma que controlam as mãos que manejam as agulhas, as pequenas pausas e os erros tão visíveis, o facto da pessoa que tricota para alguém pensar nesse destinatário com carinho enquanto a peça vai tomando forma e de como essa espécie de amor também transita para a lã.
Os meus filhos dizem-me que estou sempre a tricotar. O marido às vezes também. Mas é demasiado conveniente para não aproveitar estar sentada e ver qualquer coisa a crescer entre as minhas mãos. Só desejava ter descoberto esta paixão mais cedo. Mas acredito que chegou agora porque tinha de ser assim. Como todas as coisas na vida.