Borboletas na Barriga

View Original

No rescaldo, ao Sol

A manhã estava absolutamente perfeita: céu muito azul, uma ligeira brisa a abanar as copas no alto da serra. As ribeiras correm cheias e as estradas seguem vazias. Quando saio do carro, ouço os sons da paz: o chilrear dos pássaros, um cão a ladrar atrás de um monte, os chocalhos das ovelhas que pastam nos campos mais ou menos acidentados. Aqui e ali, um homem sentado à beira da estrada ou uma equipa deles a cortar e amontoar troncos, acompanhados pela GNR. Sinto que, numa outra vida, era daqui que nunca devia ter saído.

Às vezes, preciso de apanhar ar. Preciso de silêncio à minha volta, sem outras vozes por perto pensamos todos melhor. Na maioria dos dias, está tudo bem. Estou, aliás, sempre tão ocupada que não se me ocorre pensar nessa palavra maldita: cancro. Em conversa com alguém na semana passada, percebi que há uma dúvida que persiste: não sei se devo dizer que tenho cancro ou que tive cancro, não faço ideia se posso falar nele no passado. É verdade que o tumor foi removido, é verdade que os potenciais restos cancerígenos foram à vida com a radio terapia mas também é verdade que agora sou uma doente oncológica. Pelo menos durante cinco anos, é assim que me devo chamar, é nesta qualidade que devo ser atendida.

A possibilidade de recidiva ou de um tumor noutra parte do corpo assombra-me. Não é esse o verdadeiro problema do cancro, nunca mais se estar tranquilo porque se ele apareceu uma vez, pode certamente voltar a aparecer? É esta aleatoridade, os efeitos impossíveis de prever, os tratamentos hiper-específicos porque cada caso é um caso e cada cancro é um cancro. Ouço falar de uma vacina a aproximar-se da fase 3 de testes e alegro-me. Lembro-me na minha avó, com um cancro da mama descoberto e operado no início dos anos 90, ainda viva, e, por breves momentos, sinto confiança.

Nenhum de nós, por muito frio ou negro que isso possa parecer, sabe se vai chegar vivo ao fim do dia. Esta incerteza, esta incapacidade de controlarmos tudo à nossa volta ajuda a encarar a vida com cancro: se eu não sei se não sou atropelada amanhã, por que raio me hei-de afundar em conjecturas sobre o que me vai acontecer nos próximos meses ou nos próximos cinco anos? Enquanto puder sair para o silêncio da serra, enquanto puder imaginar o que teria sido a minha vida se nunca tivesse saído daqui, isso só quer dizer uma coisa: ainda aqui estou e o resto não há-de tomar conta de mim.