Borboletas na Barriga

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Então, por onde começar?

Foi no princípio de Abril. Estava a tomar banho e senti um nódulo esquisito na mama.

Não fiquei tranquila, mesmo quando o M. me dizia que não ia ser nada. Íamos de férias daí a alguns dias e resolvi esperar pelo regresso para ver a nossa médica de família. Passámos uma semana em Porto Santo e francamente não tive muito tempo para pensar nisto: estava a tentar aproveitar a praia, enquanto trabalhava também e não havia espaço para pensar em possibilidades. Mas nos banhos ele continuava lá, indiferente e instalado, visível e ameaçador. Por essa altura, ainda não pensava em nada de concreto: a ansiedade ainda não fazia das suas e eu simplesmente não estava a pensar em todos os cenários possíveis. Além do mais, nesse momento inicial, tudo o que queremos é pensar no pior.

Vi a médica de família a meio de Abril. Examinou-me e confirmou que sim senhora, havia ali uma razão para suspeitar e que o melhor mesmo era fazer uma mamografia e uma biópsia para afastar qualquer dúvida. Estes exames são de rotina nestes casos e ainda não havia razão para pânico. Não sei muito bem quais são as percentagens mas é sempre possível que um nódulo seja benigno. Esperei um mês pelos exames e lá fui eu para o hospital de Portalegre para ser vista. O resultado? Massa suspeita, recomedação para fazer biópsia e o meu primeiro encontro com a classificação BIRADS 4c (alta probabilidade de ser maligno). Tive a notícia no dia 19 de Maio e fiquei sem chão. Nesse dia, consumi todos os links com informação que encontrei pela frente, li resumos de estudos e de probabilidades e chorei perante a ideia de que se calhar tinha cancro.

Esperei mais um mês pela biópsia e esperaria mais um mês pelos resultados. É este o estado do nosso SNS: demorei três meses desde que senti o nódulo a ter o diagnóstico, e isso não é culpa dos profissionais mas sim da falta de meios, de investimento e também de pessoal. Posso descrever esse dia de Julho como um dos piores da minha vida: eu chorava, o M. chorava, éramos confortados pela enfermeira mas era como se nada fizesse sentido na minha cabeça. Era como se eu estivesse à espera que, a qualquer momento, alguém me beliscasse ou acordasse e disesse que tudo não passava de um pesadelo. Eu tinha cancro: tive de o gritar bem alto no carro quando saímos do hospital porque simplesmente não estava a acreditar. Doeu ter que dar a notícia aos meus pais e também doeu esconder a verdade dos nossos filhos. Para protegê-los, eu precisei engolir a dor e fingir que tudo estava bem, Imediatamente me passaram pela cabeça as coisas que poderia perder, senti que o futuro me escapava entre os dedos. E essa é a pior sensação de ter cancro: é nunca mais saber se estamos livres, é viver na dúvida constante se o futuro vai mesmo chegar a ser futuro. E sentir que, ao ser diagnosticada uma primeira vez, as hipóteses de voltar a ter são demasiado altas.

Mais ou menos por esta altura procurar uma segunda opinião: com a recomendação do meu cunhado e consciente de que a minha empresa me pagava um bom seguro de saúde, resolvi ser reavaliada no centro clínico da Fundação Champalimaud. Mal sabia eu que tinha feito a escolha mais acertada: o nível e qualidade dos cuidados é substancialmente diferente por não se tratar de um hospital público. Tenho consciência do meu privilégio e muitas vezes neste caminho me senti culpada por poder ter melhores cuidados de saúde do que a maioria das pessoas mas aceitei essa culpa como algo inevitável e fora do meu controlo.

Fui operada no dia 2 de Outubro e, ao contrário de outras passagens e estadias num hospital, só tenho memórias felizes desse dia. Foi uma cirurgia relativamente simples e os testes feitos durante o procedimento mostraram que o cancro ainda não se tinha espalhado para os gânglios linfáticos e, portanto, para o resto do corpo. Acordei serena, sem dores e contente por ter dado o primeiro passo para eliminar esta besta da minha vida. Com um pouco de sorte, esquivo-me à quimioterapia e fico-me pelas três semanas de radioterapia pós-cirurgia. Digo com sorte porque nesta coisa do cancro aprendi que as coisas podem mudar, evoluir, piorar ou melhorar a olhos vistos e é pouco sensato fazer planos. Por agora, estou a queimar etapas e a andar em direcção ao fim do túnel.