Borboletas na Barriga

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De Julho a Setembro: um pouco de verde, muito azul e bastante silĂȘncio

Tentámos sair mais de casa mas o caminho estava cheio de gente como nós. Parámos para comer bananas e bolachas de arroz e beber pacotes de sumo à beira de um lago artificial e de uma cascata. Ainda havia lama por todo o lado, troncos de árvores doentes à espera de serem transportados dali, verde, verde. verde. O Luxemburgo, apesar de lindo, já há muito que me estava a sufocar.

O Perinha fez um ano! Nem sei o que dizer: eu sou aquela pessoa que nos quizzes sempre respondeu que era mais uma pessoa de cães do que de gatos e agora tinha um cá em casa. Um gato adorado, com uma personalidade bem vincada; senhor de si, esquivo e sem gostar de grandes demonstrações de carinho, um autêntico lorde nascido em Maio de 2020, em plena pandemia. Um gato francês que nos foi entregue na Bélgica e que agora vive no Luxemburgo - um gato do Mundo!

Andava a passar muito tempo só com os miúdos. O pai precisava de tempo para se concentrar e muitas vezes ficávamos os quatro só na sala, um pouco de videojogps, às vezes pipocas, excepcionalmente saindo e procurando espaço livre, fugindo à claustrofobia da nossa casa. Passeios entre gritos e choros, arranhões e medo de tractores, pausa para snack num, banco à sombra e mais uma para admirar a felicidade dos cavalos a chegarem ao prado.

Ainda mais felicidade: os dois dias das duas doses da vacina. Deseperei de Janeiro a Abril com a lentidão de tudo: as vacinas que não chegavam primeiro; depois, as necessárias prioridades para só deppis chegarem ao resto da população. Estávamos no pico da incerteza acerda da AstraZeneca e o Luxemburgo resolveu abrir vagas para voluntários (com o devido consentimento informado). Inscrevemo-nos no primeiro dia e logo fomos chamados. O alívio de estar num cenário surreal de vacinação em massa passou, num mês, â esperança de retomar a vida interrompida. Obrigada, ciência!

Dois mil quilómetros de viagem e uma das primeiras coisas que fizemos quando chegámos a Portugal foi acolher uma gatinha chamada Sammy (Samantha de seu nome completo) para fazer companhia ao Perinha. Esta doçura chegou a nossa casa com pouco mais de dois meses e logo ganhou o seu espaço na nossa vida e nas nossas rotinas. Comilona desde o primeiro momento, ganhou a afeição do Perinha em apenas umas horas e isso não é para todos!

Primeira paragem do Verão no Barrieiro, a dois. Guardo suaves recordaçóes dos nossos dias ali: a paisagem que tão bem conhecíamos mas nunca tínhamos apreciado assim, o vento que agitava a serra, o som das agulhas dos pinheiros à torrina do Sol, a piscina que partilhávamos no final do dia com os restantes hóspedes, o pequeno-almoço num taleigo todas as manhãs, os primeiros sinais de que a minha avó não estava bem.

Segunda paragem, agora a cinco. A Herdade da Almojanda a permitir-nos o retiro que tanto precisávamos, no meio daquele calor quase insuportável. Éramos só nós e um casal jovem, a quem certamente estragámos as férias com os nossos gritos, as zangas deles, os intermináveis saltos para a água. Ouvíamos simplesmente as cigarras, era o pico do Verão, uma vada passava por nós visivelmente doente e Portalegre estava sempre na nossa linha de horizonte. Dormíamos sob um telhado de madeira que rangia â mínima corrente de ar e agradecíamos a invenção do ar condicionado.

Levámos os miúdos a ver os dinossauros. Divertimo-nos todos muito, eles trouxeram recordações, tivemos encontros improváveis a meio da visita, ficámos gratos por termos tido esta ideia. Quem diria que fazer três putos tão felizes era tão simples?

Finalmente em Lisboa e o estado da minha avó mudou para sempre: saiu de sua casa pela última vez, numa decisão inevitável mas assim mesmo dolorosa. A dois, dormimos, lemos à beira da piscina, passeámos à beira do rio, comemos e bebemos, dispensámos os planos e qualquer responsabilidade, fomos apenas dois durante uma semana e isso quase nos fez esquecer todas as outras semanas em que esta liberdade é impensável.

A minha avó morreu. Foi depressa mas também como que anunciado, não sei o que dizer. Não me soa bem dizê-lo assim mas também não quero dizer que partiu, que foi para um sítio melhor. A minha avó desapareceu e levou com ela mais uma parte importante da minha vida. Levei-os comigo à praia para poder respirar fundo e dar também à minha mãe o espaço que lhe fazia falta.

Passei quase dois meses em Portalegre: as primeiras semanas de férias, depois em teletrabalho. Quase nunca saí do meu Atalaião: comi boas sardinhas, tirei petiscos, bebi Lambrusco branco, vi a bola no café, trabalhei numa das casas em que cresci e que há muito não é habitada, não fiz absolutamente nada de especial.

Os últimos tempos dos miúdos foram extremamente difíceis. Gritámos e discutimos muito, eles deram-se muito mal e estavam já divididos entre querer voltar antecipadamente e nunca mais sair dali. Foi um erro de cálculo achar que eles podiam passar dois meses sem grandes planos, ainda mais no meio de um acontecimento trágico no seio da família. Eu desesperei, admito. Eles levaram muitas vezes a melhor mas só precisavam da nossa casa e do regresso às rotinas.

Voltei uma pessoa diferente e ainda não me conformei com isso. Mas posso sentir-me desconfortável e incompleta na nossa casa e só isso já faz tudo parecer menos doloroso. O plano eram umas simples férias de Verão: afinal, ainda trouxe uma ferida aberta que vai custar a sarar.