Borboletas na Barriga

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Aprender a viver com cancro

Talvez das primeiras coisas que me passou pela cabeça quando o diagnóstico confirmou o pior foi que não queria ser nem podia ser uma daquelas pessoas “positivas”, daquelas que vão buscar forças sabe-se lá onde, que encaram a doença como uma luta, que são um exemplo de superação e positividade. Eu não sou essas pessoas: eu chorei e fiquei triste, chocada, aterrorizada. Imediatamente pensei que não ia viver o suficiente para ver os nossos projectos a serem concretizados, os nossos filhos a crescer. Nunca perguntei “porquê eu?” nem nunca tentei encontrar uma razão ou explicação para o que me estava a acontecer e senti-me simplesmente desolada e atraiçoada pela vida.

Há muito a tentação de tentar perceber porque se tem esta doença: se a hereditariedade foi determinante, se terá sido o tabaco ou o álcool, se o nosso estilo de vida não foi saudável o suficiente até chegar a este momento mas a verdade é que há muito poucas respostas a estas dúvidas. E, por isso mesmo, não se ganha nada em matar a cabeça a pensar nelas. A doença existe, está ali, vai progredir ou não, vai abalar a nossa maneira de estar e de pensar, não importa a sua causa. Para mim, este foi um dos primeiros ensinamentos do cancro.

No momento exacto do diagnóstico, o mundo, tal como o conhecemos, passa a ser uma ruína. Prova-nos que qualquer esperança, desejo ou vontade que possamos ter não é nada diante de uma doença deste género. A vida passa a ser mais aqui e agora e menos ideias de futuro, é inevitável. E, ao mesmo tempo, o cancro põe em perspectiva os “problemas” que achávamos que tínhamos: eu estava a ser seguida por uma psicóloga para me refazer do episódio de burnout do ano passado e, como seria de esperar, esse episódio passou a ser completamente irrelevante face ao desafio que agora tinha pela frente. Quase me rio quando penso no valor exagerado e pouco saudável que dava às coisas do trabalho quando a notícia chegou. Nenhum chefe, nenhuma tarefa, nenhum emprego nos devia tirar o sono quando a nossa saúde pode estar em jogo.

A segunda coisa que aprendi nestes meses foi a repetir e a ouvir de outros a frase “uma coisa de cada vez”. Porquê pensar se é cancro quando o resultado da biópsia ainda não chegou? Porquê imaginar o pior cenário de tratamentos quando o estadiamento da doença ainda não foi feito? Porquê sofrer a pensar nos efeitos secundários de qualquer tratamento quando cada pessoa é uma pessoa e tem a sua reacção única e impossível de antecipar? Comecei a preocupar-me mais com o que tenho à frente, agora mesmo, do que com uma hipótese que se pode confirmar daqui a semanas ou meses. Ao dividir todas as coisas em pequenas tarefas, consigo mais pequenas conquistas ou derrotas mais insignificantes. E, nesta mesma direcção, encontrei um mantra muito simples e auto-explicativo que me ajuda a encarar os pequenos desafios, os efeitos secundários esperados e inesperados com mais calma: mais um passo em direcção à minha cura. Repeti-o até à exaustão quando fiz a minha primeira ressonância magnética, seguramente uma das experiências mais traumáticas da minha vida ou quando sentia alguma dor nas minhas cicatrizes.

Nada estaria completo sem um pouco de culpa e de vergonha, até. Culpa porque posso escolher onde sou tratada, porque me posso permitir não trabalhar durante este período, porque tenho a possibilidade de encarar o cancro de uma maneira ponderada e tranquila, sem medos que não os absolutamente impossíveis de evitar. Também o sentimento de culpa de não passar pela quimioterapia (por enquanto, não quero dizer nunca) e, portanto, não ter o aspecto frágil de muitas mulheres que vejo todos os dias no hospital de dia. É como se a minha doença fosse uma brincadeira ao lado da delas e eu não tivesse direito de me queixar ou de chorar porque tenho medo. É como se não me fosse permitida essa vulnerabilidade porque não tenho a pior espécie de doença. E depois há a vergonha, o medo de que as pessoas tenham pena de mim. Pensei que não ia tornar a minha doença pública porque me parecia impossível dizê-lo e ver o olhar de pena na cara das pessoas. Demorei mas, depois de dizer aos nossos filhos a verdade (eles, mais do que ninguém, precisvam e mereciam saber), disse em voz alta pelo que estava a passar. E o que é que aprendi com isto? Que as pessoas mais inesperadas vão querer saber de nós e acompanhar-nos neste caminho; que muitas pessoas não vão tocar no assunto porque não sabem o que dizer; que ser franca e transparente ajuda a viver o nosso dia a dia com mais tranquilidade e menos medos.

Não faço ideia do que esta doença ainda me vai ensinar ou lembrar. Só sei que já não sou a mesma pessoa que era em Abril deste ano: tenho menos ilusões, sou um nadinha mais realista e também, inevitavelmente, mais triste. Mas também vou saboreando as pequenas conquistas com o orgulho de estar a fazer o que posso. Já passei por tantas fases de aceitação, resignação, raiva e racionalização do que me está a acontecer que alguma coisa de bom haverá de ficar.